24 abril 2013

O poder da escrita de Mia Couto

Inspirado por brasileiros como Jorge Amado e Guimarães Rosa, Mia Couto é uma das principais vozes literárias da África. Foto: Blog O Único Planeta que Temos






Não raramente ouço e leio muita gente dedicando elogios a Mia Couto. A princípio, há alguns anos, não sei se por inocência minha, ignorância ou pelo costume dos nomes brasileiros, achei que Mia fosse uma mulher. Mais tarde, todavia, pesquisei de maneira criteriosa sobre parte da obra do autor e me intriguei pela grandeza que o nome invocava. 

Biólogo, escritor, natural de Moçambique, autor de livros como Terra Sonâmbula e O Último Voo do Flamingo, Mia é um dos principais expoentes da literatura africana contemporânea. Seus livros, de acordo com admiradores e críticos, são dotados daquela narração ideal em que a prosa e o lirismo se encontram e formam uma linha bem tênue, um estilo marcado por passagens belas e de extrema delicadeza. Soma-se a isso uma enorme perícia para falar da situação de África e um gosto natural pela biosfera que, não raramente, inclusive em seus títulos, fica evidente.

Decidi, desta forma, por me iniciar formalmente na literatura do autor através de um livro curioso que, ao contrário do que pode esperar, reúne diferentes ensaios feitos pelo Mia escritor, jornalista e biólogo, redigidos para palestras, conferências e demais eventos aos quais ele compareceu. Os ensaios, de acordo com o moçambicano, são intervenções e tratam de assuntos diversos no mesmo tom inconfundível com o qual narra os contos e causos de suas personagens. Giram em torno, todavia, da vida, da escrita, dos problemas enfrentados pelo continente africano, do conformismo humano, da literatura de Jorge Amado e de Guimarães Rosa, da linguística, de Barack Obama e de muitas coisas mais.

O livro ao qual me refiro é E se Obama fosse africano?, publicado no Brasil pela Companhia das Letras e, abaixo, seguem alguns trechos que selecionei com muito interesse dele para ilustrar o que tanto tenho ouvido dizerem sobre Mia Couto. 
"Eu creio que todos nós, poetas e ficcionistas, não deixamos nunca de perseguir esse caos
seminal. Todos nós aspiramos regressar a essa condição em que estivemos tão fora de um idioma que todas as línguas eram nossas. Dito de outro modo, todos nós somos impossíveis tradutores de sonhos. Na verdade, os sonhos falam em nós o que nenhuma palavra sabe dizer."
p. 12 - Línguas que não sabemos que sabíamos - Intervenção na Conferência Internacional de Literatura Waltic, Estocolmo
"Estamos todos amarrados aos códigos colectivos com que comunicamos na vida quotidiana. Mas quem escreve quer dizer coisas que estão para além da vida quotidiana. Nunca o nosso mundo teve ao seu dispor tanta comunicação. E nunca foi tão dramática a nossa solidão. Nunca houve tanta estrada. E nunca nos visitámos tão pouco."
p. 14 - Línguas que não sabemos que sabíamos - Intervenção na Conferência Internacional de Literatura Waltic, Estocolmo
"Eu tenho para mim que o maior inimigo do escritor pode ser a própria literatura. Pior que não escrever um livro, é escrevê-lo demasiadamente."
p. 63 - Sonhar em casa - Intervenção sobre Jorge Amado, São Paulo
"A palavra "ler" vem do latir "legere" e queria dizer "escolher". Era isso que faziam os antigos romanos quando, por exemplo, seleccionavam entre os grãos de cereais. A raiz etimológica está bem patente no nosso termo "eleger". Ora o drama é que hoje estamos deixando de escolher. Cada vez mais somos escolhidos, cada vez mais somos objecto de apelos que nos convertem em números, em estatísticas de mercado."
p. 97 - Quebrar armadilhas, Intervenção no Congresso de Literatura Cole, Quebrando armadilhas, Brasil
"Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não leem livros. Mas o deficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros."
p. 103 - Quebrar armadilhas, Intervenção no Congresso de Literatura Cole, Quebrando armadilhas, Brasil
Todas as citações foram reproduzidas integralmente como estão no livro, daí um possível estranhamento pela grafia de algumas palavras que seguem o português de Moçambique (mais próximo daquele de Portugal no quesito gramatical).

Já leu algo de Mia Couto? Interessou-se? Então conte para mim!

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