Operários, Tarsila do Amaral |
Estava incrivelmente nervosa ao desembarcar naquela imensa cidade de contrastes e dimensões. Minha família unira-se para pagar a passagem de avião com um prazer tremendo, pois acreditavam que eu faria bom aproveitamento do lugar. Assim eu esperava, assim nós esperávamos. Queria crescer profissionalmente na minha carreira jornalística e sabia que no interior do Ceará, onde costumava assistir, as perspectivas de crescimento eram poucas. Aceitei a chance paulistana sem hesitar.
Ao sair do aeroporto, estava pensando em tomar um táxi, entretanto tão caótico era o trânsito com o qual me deparei que resolvi ir de encontro ao meu destino por conta própria. Assim, teria uma impressão muito mais original daquele lugar que já me chamava atenção.
Caminhei tranquilamente pelas ruas e me assustei com o que via. As calçadas pareciam ser pavimentadas pelos pedestres já que não se via indícios desta. Apenas pude ver pés. Pés calçados, pés descalços, pés que corriam, pés que dançavam... Todos apressados como formigas operárias debaixo de um sol escaldante que vez ou outra era bloqueado pela sombra de um dos tantos arranha-céus daquela estranha cidade.
Após algum tempo, notei que sentia imensa falta do silêncio interiorano. Quando vagava por alguma rua que o som irritante das buzinas cessava, não era o coaxar do sapo ou o estridular do grilo que me acordavam daquela realidade, mas sim a voz do povo em um uníssono capaz de se registrar em minha memória à primeira escuta. Esta eu julgaria como sendo a parte mais curiosa daquele lugar.
Havia ali uma miscelânea incontestável de raças. A coisa mais fácil de se encontrar era um imigrante. Estes perdiam-se igualmente na balbúrdia da cidade grande, porém não era difícil identificá-los: reclamavam da sua lerdeza com palavras engraçadas das quais uma garota do interior nunca sonhou existir. Tinham sotaques diversos aonde se ouviam facilmente suas irritações.
Todos ali dispunham das mesmas características: bravos e consequentemente pouquíssimo afáveis; andavam com pressa e não se permitiam o pecado de esquecer seus relógios (objeto que mais se via por ali); não se cumprimentavam, seus segundos eram rigorosamente calculados para cometer tamanha petulância; e, é claro, não poderia me esquecer do desprezo que os cidadãos paulistanos tinham àqueles que não pertenciam à mesma rotina tabelada. Não é à toa que, ao ouvir a palavra “desemprego” no noticiário visto nos cincos minutos calculados de permanência em uma padaria de esquinas, as expressões eram como se o fim do mundo estivesse próximo, como se o capuccino estivesse se tornando amargo de repente, e o estresse (não nos esqueçamos dele), vinha logo atrás – com muita pressa – por sinal.
Boa parte daquele povo seguia em direção aos principais comércios e aos centros econômicos da cidade. O que, particularmente, era de meu maior agrado. Havia tantos produtos, tantas cores! Ruas inteiramente destinadas a carros importados, daqueles que um civil sempre sonhou em ter; lojas dos mais variados objetos a preços absurdamente baixos ou absurdamente altos; pastelarias com os nomes chineses mais improváveis e esquisitos para o brasileiro; feiras no meio das avenidas, gritaria, competição; a Paulista e todos os seus bancos históricos com o entra e sai dos bancários e suas maletas... Não poderia esquecer-me, porém, dos vendedores ambulantes. Homens pacatos e que, em sua maioria, faltou-lhes a sorte. Provavelmente migrantes nordestinos do campo, ou então, camelôs coreanos, chineses, japoneses, bolivianos, chilenos,argentinos e árabes que lutavam pelo pão de cada dia, tão juntos e ao mesmo tempo, tão distantes.
Aquela rotina era engraçada, comum e facilmente descrita. Acordavam cedo para pegar o ônibus às seis e meia. Dia de rodízio. Reclamavam do trânsito infernal, e ao descerem dele (já atrasados), costumavam amaldiçoar qualquer sólido que atravessasse seu caminho. Ao meio-dia buscar as crianças na escola. Dar-lhes almoço e o dinheiro da condução para ir ao centro de idiomas, após o dever de casa, é claro. Às oito horas pegar o metrô. Fazer as compras do mês para chegar em casa às dez e colocar os filhos para dormir. Os dias seguintes eram parecidos. Apenas no final de semana tinham uma trégua. Um dia era dedicado à família, ir ao Ibirapuera caminhar, pedalar na USP, assistir a uma das peças em cartaz no Teatro Abril e gastar o dinheiro do final do salário. Outrora, ir ao shopping center comprar o presente de aniversário de algum colega. Viajar para o Litoral Sul e pegar um trânsito infernal em Praia Grande.
Assim era a vida em São Paulo. Cidade das oportunidades, verdadeiro formigueiro humano. Previsível e fácil de compreender. Todos reclamávamos, mas no fundo, amávamos aquele lugar.
Não custou muito até que eu virasse uma adepta à rotina. Casei-me com um catarinense, tivemos um filho. Logo eu era mais uma operária estressada entre milhões. Hoje, quando perguntam-me sobre o interior, é cômico dizer que não me lembro. Não mais conheço o silêncio, a calma ou a monotonia. Sou encantada por São Paulo e jamais deixarei esta cidade que, de forma pouco convencional, me acolheu como fez com todos os seus queridos e produtivos habitantes.
3 comentários:
Eu gosto de Sampa! Apesar de tdo, e uma cidade mto movimentada. Adoroo!
Adorei o texto, Ana!
BjoO
Pri
Entre Fatos e Livros
Eu gosto de São Paulo, mesmo não morando na capital UAHSAUSH e apesar de toda a loucura que essa cidade é.
Beijos, Vanessa.
This Adorable Thing
Que belo texto... amei a forma como descreve o horror da cidade e o amor por ela ao mesmo tempo... Também sou apaixonada por esse frevo de cidade grande, que horas nos faz mal, e outras nos faz também... Beijinhos
Universo de um Closet
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