17 março 2011

Leia mais: Crônicas

   Estava lendo ainda ontem um livro da biblioteca de minha escola, e fiquei me perguntando porque as pessoas têm tanto preconceito contra aqueles exemplares fininhos de capa mole, com um carimbo de "Livro do Professor - Venda Proibida". Eu não tenho e estando sedenta de alguma leitura, escolhi um exemplar muito, muito bom da Editora Ática chamado Acontece na Cidade.
   Acontece que Acontece na Cidade é um livro muito, muito especial. Entretanto, é vítima constante de brincadeirinhas do gênero "É livro de Ensino Fundamental, é livro para aluno de 12 anos...", etc e tal. Não acredito nisso, eu realmente não acredito que haja idade correta para ler um determinado livro. É claro que se uma criança pegar um livro que fale de guerra e regime islâmico como, por exemplo, A Cidade do Sol, ela provavelmente não entenderá ou não levará a sério muita coisa. Mas com esse livro é diferente. Ele fala de assuntos do dia a dia de quaisquer pessoas que morem em cidades grandes. Paulistanos, cariocas, gaúchos, todos nós estamos presentes aí de uma forma especial. Com as crônicas é diferente. Não há anos suficientes nem demais para que o leitor se entretenha com esse texto maravilhoso que mistura o melhor da literatura e do jornalismo. Essa miscelânea gostosa de poesia com cotidiano, de simplicidade com questões delicadas, esse texto de escritor com um quê de jornalista astuto.
    Do livro, ficam-me memórias de ótimas crônicas. Delas, destaco uma que achei especialmente adequada à vida moderna, à rotina e à semana. Aproveitem a leitura!

Weheartit.com
 Eu sei, mas não devia


   Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
   A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
   A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
   A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
   A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
   A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
   A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
   A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
   A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
   A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

(1972)

Marina Colasanti nasceu em Asmar a 26 de setembro (assim como eu) de 1937, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

Fonte: Releituras



10 comentários:

Nanda disse...

Ei Ana,

Não conhecia seu blog, muito lindo :)
Eu adorava estes livrinhos da Ática quando era novinha, agora tem muito tempo que não vejo deles. Lindo texto que vc citou :)

beijo

Carol Bia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Daniele Tem Pass disse...

Adoro crônicas, o jeito como elas nos fazem parar para reflerir sobre assuntos banais.
E eu já tinha lido outra coisa da Marina Colasanti, mas agora não lembro o quê.

Ótimo post. Beijo!

Alessandra Sousa disse...

Crônicas são legais. Estou tentando me especializar nelas. Marina Colassante era uma excelente crónista, eu ja li alguns de seus textos. Te espero no Change Feelings

Nathalia Passarinho disse...

Puxa!
Essa crônica com toda certeza
é uma das melhores que já li.

Muito bom o conteúdo do blog.

Bejoo

☆.•тнαмму ¢αяσℓιηу.•☆ disse...

Nunca li crônica,quem sabe no futuro leio algum..

Adorei a postagem, realmente agente se acostuma a pequenas coisas da vida que poderia ser diferente,
como fazer esteira ao ir fazer uma caminhada em um parque,entre muitas.somos acomodados com a vida mórbida que levamos.eu sou acomodada com muitas mais isso so com o tempo que se da um jeito..

Ana em relação a minha postagem,realmente as pessoas baixam muito os E-books eu particularmente sou uma, nao compraria E-books se posso baixar,mas nao deixo de compra um livro para baixar E-books..

bjs ate mais

Vanessa disse...

Adorei o post, muito bacana. Adoro os textos daqui (:

Beijos, Vanessa.
This Adorable Thing.

Robledo Cabral Filho disse...

Essa crônica é uma das mais lindas que eu já li na minha vida. O interessante é que ela já surgiu aos meus olhos umas três ou quatro vezes, sem que eu tivesse que tomar qualquer ação. Ela simplesmente aparece e eu sou forçado a relê-la, experimentando novamente uma sensação inefável.

Atualmente, prefiro contos a crônicas, por uma terrível questão de associação. Fiquei tão acostumado a acessar perfis, em redes sociais, de garotas fúteis e encontrar frases de Clarice Lispector que sempre associo discursos com tons de crônica a essa futilidade toda, o que me faz inconscientemente repelir os textos. Sei que é horrível, mas é inevitável pra mim.

De qualquer forma, parabéns pelo post e pela saiba escolha da crônica!

=*
http://livrosletrasemetas.blogspot.com/

Patty Lupicinio disse...

Ana, crônicas realmente são ótimas, pena que a parcela da população que dá valor a elas, ainda é pequena.
Parabéns pelo post, pelo blog, tá lindo, lindo!
E obrigada por passar sempre lá no Chilli in Fashion.
Quando for comentar lá, deixa o link daqui, tá?
Pra eu poder sempre vir deixar um coment tbm :)

Coloquei seu banner nos "blogs amigos" do Chilli, indicadíssimo!
beijinhos

http://chilliinfashion.blogspot.com

Ana Ferreira disse...

Obrigada a todos pelos comentários e por sempre passarem aqui!

A crônica em questão da Marina Colasanti é realmente muito bonita, nos faz pensar e refletir sobre as coisas. Que todos leiam mais crônicas! rs

Patty, obrigada, viu? *-*