08 novembro 2011

Crônicas: O prazer da leitura

Vasculhando pela internet e procurando por algo interessante, encontro esta maravilhosa crônica de Rubem Alves e trago aos leitores do blog com a intenção de compartilhar um pouco dessa magia de ler pela voz eloquente de um mestre na Literatura.
"Todo texto literário é uma partitura musical. As palavras são as notas. Se aquele que lê é um artista, se ele domina a técnica, se ele surfa sobre as palavras, se ele está possuído pelo texto – a beleza acontece."
O prazer da leitura
por Rubem Alves 
Alfabetizar é ensinar a ler. A palavra alfabetizar vem de “alfabeto“. “Alfabeto“ é o conjunto das letras de uma língua, colocadas numa certa ordem. É a mesma coisa que “abecedário“. A palavra “alfabeto“ é formada com as duas primeiras letras do alfabeto grego: “alfa“ e “beta“. E “abecedário“, com a junção das quatro primeiras letras do nosso alfabeto: “a“, “b“, “c“ e “d“. Assim sendo, pensei a possibilidade engraçada de que “abecedarizar“, palavra inexistente, pudesse ser sinônima de “alfabetizar“...

“Alfabetizar“, palavra aparentemente inocente, contém uma teoria de como se aprende a ler. Aprende-se a ler aprendendo-se as letras do alfabeto. Primeiro as letras. Depois, juntando-se as letras, as sílabas. Depois, juntando-se as sílabas, aparecem as palavras...

E assim era. Lembro-me da criançada repetindo em coro, sob a regência da professora: “be a ba; be e be; be i bi; be o bo; be u bu“... Estou olhando para um cartão postal, miniatura de um dos cartazes que antigamente se usavam como tema de redação: uma menina cacheada, deitada de bruços sobre um divã, queixo apoiado na mão, tendo à sua frente um livro aberto onde se vê “fa“, “fe“, “fi“, “fo“, “fu“... (Centro de Referência do Professor, Centro de Memória, Praça da Liberdade, Belo Horizonte, MG.)

Se é assim que se ensina a ler, ensinando as letras, imagino que o ensino da música deveria se chamar “dorremizar“: aprender o dó, o ré, o mi... Juntam-se as notas e a música aparece! Posso imaginar, então, uma aula de iniciação musical em que os alunos ficassem repetindo as notas, sob a regência da professora, na esperança de que, da repetição das notas, a música aparecesse...

Todo mundo sabe que não é assim que se ensina música. A mãe pega o nenezinho e o embala, cantando uma canção de ninar. E o nenezinho entende a canção. O que o nenezinho ouve é a música, e não cada nota, separadamente! E a evidência da sua compreensão está no fato de que ele se tranquiliza e dorme – mesmo nada sabendo sobre notas! Eu aprendi a gostar de música clássica muito antes de saber as notas: minha mãe as tocava ao piano e elas ficaram gravadas na minha cabeça. Somente depois, já fascinado pela música, fui aprender as notas – porque queria tocar piano. A aprendizagem da música começa como percepção de uma totalidade – e nunca com o conhecimento das partes.

Isso é verdadeiro também sobre aprender a ler. Tudo começa quando a criança fica fascinada com as coisas maravilhosas que moram dentro do livro. Não são as letras, as sílabas e as palavras que fascinam. É a estória. A aprendizagem da leitura começa antes da aprendizagem das letras: quando alguém lê e a criança escuta com prazer. “Erotizada“ – sim, erotizada! – pelas delícias da leitura ouvida, a criança se volta para aqueles sinais misteriosos chamados letras. Deseja decifrá-los, compreendê-los – porque eles são a chave que abre o mundo das delícias que moram no livro! Deseja autonomia: ser capaz de chegar ao prazer do texto sem precisar da mediação da pessoa que o está lendo.

No primeiro momento as delícias do texto se encontram na fala do professor. Usando uma sugestão de Melanie Klein, o professor, no ato de ler para os seus alunos, é o “seio bom“, o mediador que liga o aluno ao prazer do texto. Confesso nunca ter tido prazer algum em aulas de gramática ou de análise sintática. Não foi nelas que aprendi as delícias da literatura. Mas me lembro com alegria das aulas de leitura. Na verdade, não eram aulas. Eram concertos. A professor lia, interpretava o texto, e nós ouvíamos extasiados. Ninguém falava. Antes de ler Monteiro Lobato, eu o ouvi. E o bom era que não havia provas sobre aquelas aulas. Era prazer puro. Existe uma incompatibilidade total entre a experiência prazerosa de leitura – experiência vagabunda! – e a experiência de ler a fim de responder questionários de interpretação e compreensão. Era sempre uma tristeza quando a professora fechava o livro...

Vejo, assim, a cena original: a mãe ou o pai, livro aberto, lendo para o filho... Essa experiência é o aperitivo que ficará para sempre guardado na memória afetiva da criança. Na ausência da mãe ou do pai a criança olhará para o livro com desejo e inveja. Desejo, porque ela quer experimentar as delícias que estão contidas nas palavras. E inveja, porque ela gostaria de ter o saber do pai e da mãe: eles são aqueles que têm a chave que abre as portas daquele mundo maravilhoso! Roland Barthes faz uso de uma linda metáfora poética para descrever o que ele desejava fazer, como professor: maternagem: continuar a fazer aquilo que a mãe faz. É isso mesmo: na escola, o professor deverá continuar o processo de leitura afetuosa. Ele lê: a criança ouve, extasiada! Seduzida, ela pedirá: “Por favor, me ensine! Eu quero poder entrar no livro por conta própria...“

Toda aprendizagem começa com um pedido. Se não houver o pedido, a aprendizagem não acontecerá. Há aquele velho ditado: “É fácil levar a égua até o meio do ribeirão. O difícil é convencer a égua a beber“. Traduzido pela Adélia Prado: “Não quero faca nem queijo. Quero é fome“. Metáfora para o professor: cozinheiro, Babette, que serve o aperitivo para que a criança tenha fome e deseje comer o texto...

Onde se encontra o prazer do texto? Onde se encontra o seu poder de seduzir? Tive a resposta para essa questão acidentalmente, sem que a tivesse procurado. Ele me disse que havia lido um lindo poema de Fernando Pessoa, e citou a primeira frase. Fiquei feliz porque eu também amava aquele poema. Aí ele começou a lê-lo. Estremeci. O poema – aquele poema que eu amava – estava horrível na sua leitura. As palavras que ele lia eram as palavras certas. Mas alguma coisa estava errada! A música estava errada! Todo texto tem dois elementos: as palavras, com o seu significado. E a música... Percebi, então, que todo texto literário se assemelha à música. Uma sonata de Mozart, por exemplo. A sua “letra“ está gravada no papel: as notas. Mas assim, escrita no papel, a sonata não existe como experiência estética. Está morta. É preciso que um intérprete dê vida às notas mortas. Martha Argerich, pianista suprema (sua interpretação do concerto n. 3 de Rachmaninoff me convenceu da superioridade das mulheres...) as toca: seus dedos deslizam leves, rápidos, vigorosos, vagarosos, suaves, nenhum deslize, nenhum tropeção: estamos possuídos pela beleza. A mesma partitura, as mesmas notas, nas mãos de um pianeiro: o toque é duro, sem leveza, tropeções, hesitações, esbarros, erros: é o horror, o desejo que o fim chegue logo.

Todo texto literário é uma partitura musical. As palavras são as notas. Se aquele que lê é um artista, se ele domina a técnica, se ele surfa sobre as palavras, se ele está possuído pelo texto – a beleza acontece. E o texto se apossa do corpo de quem ouve. Mas se aquele que lê não domina a técnica, se ele luta com as palavras, se ele não desliza sobre elas – a leitura não produz prazer: queremos que ela termine logo. Assim, quem ensina a ler, isto é, aquele que lê para que seus alunos tenham prazer no texto, tem de ser um artista. Só deveria ler aquele que está possuído pelo texto que lê. Por isso eu acho que deveria ser estabelecida em nossas escolas a prática de “concertos de leitura“. Se há concertos de música erudita, jazz e MPB – por que não concertos de leitura? Ouvindo, os alunos experimentarão os prazeres do ler. E acontecerá com a leitura o mesmo que acontece com a música: depois de ser picado pela sua beleza é impossível esquecer. Leitura é droga perigosa: vicia... Se os jovens não gostam de ler, a culpa não é deles. Foram forçados a aprender tantas coisas sobre os textos - gramática, usos da partícula “se“, dígrafos, encontros consonantais, análise sintática –que não houve tempo para serem iniciados na única coisa que importa: a beleza musical do texto literário: foi-lhes ensinada a anatomia morta do texto e não a sua erótica viva. Ler é fazer amor com as palavras. E essa transa literária se inicia antes que as crianças saibam os nomes das letras. Sem saber ler elas já são sensíveis à beleza. E a missão do professor? Mestre do kama-sutra da leitura...

APERITIVOS

1. “Analfabeta não é a pessoa que não sabe ler. É a pessoa que, sabendo ler, não gosta de ler.“ (Quem foi que disse isso? Acho que foi o Mário Quintana).

2. A menininha de 9 anos me explicou como as crianças na sua escola aprendiam a ler: “Aqui na Escola da Ponte não aprendemos letras e silabas. Só aprendemos totalidades...“

3. Os compositores colocam em suas partituras indicações para orientar o intérprete: lento, presto, adagio, alegretto, forte, piano, ralentando. Os escritores deveriam fazer o mesmo com seus textos. Há textos que devem ser lidos lentamente, expressivamente, tristemente. Outros que exigem leveza, rapidez, riso. O leitor experiente não precisa dessas indicações. Mas elas poderiam ajudar os principiantes.

4. “Mais valem dois marimbondos voando que um na mão“ (Almanak do Aluá).

5. Graciliano Ramos relata que, quando menino, na escola lhe ensinaram um ditado: “Fale pouco e bem e ter-te-ão por alguém“. Ele repetia o ditado mas ficava com uma dúvida: “Quem será esse ‘Tertião’?“

(Correio Popular, Caderno C, 19/07/2001.)
Espero que gostem como eu gostei.
Uma boa terça-feira a todos!

15 comentários:

Babi disse...

Adorei Ana!! Acho que já havia lido essa crônica, mas mesmo assim me diverti. ótimo post!!

Bjs, Babi

http://a-viajante-dos-livros.blogspot.com/

Just Books disse...

Nossa, adorei. A comparação da leitura com a música, a pura verdade em relação aos jovens leitores que aprendem tantas coisas que acabam por não conhecer esse prazer. Muito boa a crônica ;)

"Leitura é droga perigosa: vicia... " A maior verdade dessa crônica. rs'

Bjão;*
Naty - Just Books !

Aione Simões disse...

Oi Ana!
Confesso que, inicialmente, pensei em não ler o post hoje por causa do tempo curto! Mas ainda bem que mudei de ideia, porque gostei muito!
Acho que o texto trata, em outros palavras, de uma questão importante: o analfabetismo funcional. Claro que o termo trata mais da questão daqueles que leem e não compreendem, enquanto o texto está mais ligado ao prazer de ler. Mas foi impossível não pensar nessa questão!
Apesar de concordar com o autor quando ele diz que, se não gostamos de ler é porque não fomos bem ensinados, devo dizer que nem sempre é questão de sermos ou não bem ensinados. Têm textos que me fascinam, enquanto outros são altamente tediosos. Acho que depende do escritor, do tema, do momento do leitor. É toda uma combinação de fatores!
De qualquer forma, a leitura deve sim ser estimulada desde o início e pelos meios "corretos", aliados ao prazer de ler, não somente pela técnica!
Beijos!

Leitura entre amigas disse...

Ainda não conhecia essa Cronica do Rubem Alvez, e confesso que amei, todo texto que fala de leitura eu gosto *-*
Adorei essa parte: '' E acontecerá com a leitura o mesmo que acontece com a música: depois de ser picado pela sua beleza é impossível esquecer. Leitura é droga perigosa: vicia...''

Beijos!

Elidiane - Leitura entre amigas

Raquel Pereira disse...

Rubem Alves pra mim é um mestre na arte de escrever crônicas e mais uma vez, foi ótimo no texto.
A escolha então de comparar a escrita com a música foi perfeita.

Parabéns por compartilhar tão excelente crônica.

Bjok

Rapha disse...

Oi Ana :)

Vc sempre trazendo coisas super interessante aqui no blog.

Confesso o tamanho da cronica assusta um pouco, porem fiz questão de ler, e poxa, adorei.


Beijos
Rapha - Doce Encanto

Unknown disse...

também já havia lido mas adorei do mesmo jeito! Eu concordo com a comparação às partituras achei bem criativo!

fabdosconvites disse...

O seu aperitivo 1 é mais que perfeito. Bjs, Rose.

Alinne disse...

Eu não conhecia essa crônica, achei ela muito boa.Gostei bastante do aperitivo 1 é perfeito.
Beijos.


Books e Desenhos

BeliM disse...

Oi!!!

Simplesmente adorei esse texto!
Bacana essa comparação com a música. Eu tb acho que o que nos fascina e motiva a ler é a história. O que sempre traz um prazer imenso!!!

Bjuss

Ana! disse...

Adorei o texto, meninas :) E tem umas frases que eu super concordo, risos. ^^ beijos, http://doceescrita.blogspot.com xx

Nati Rabelo disse...

Texto altamente musical =)

mas concordo com o mesmo ponto da Aione, nem sempre não gostar de certo tipo de texto ou livro quer dizer que não fomos ensinados a gostar, mas claro que a prática e estímulo desde cedo, conta muito!

Obrigada por compartilhar com a gente =)

Bejinhos

Cíntia Mara disse...

Amo crônicas! Rubem Alves é ótimo.
Perfeita essa citação comparando a leitura à música - minhas duas paixões - resumiu muito bem o texto :)

Beijos

Teorias de Gi disse...

No começo do texto fiquei com saudades da época do primario, acho que sempre gostei de ler quando aprendi a juntar as silabas ficava juntando tudo que via em placas, lojas, tudo que via...Sabe aquela frase de parachoque de caminhão: Bobo é assim mesmo tudo que ve le, nem sei quantas vezesja li esta frase sei que foram muitas, adorava a biblioteca da escola quando eu lia aqueles livros cheio de figuras e uma história curtinha, até ler Pollyanna da Eleanor P. Porter aicomecei a ler livros com menos figuras e mais conteudo, mas sei la ninguem me ensinou nem me lembro de minha mãe alguma vez ter lido pra mim, nem cantado...sei lá eu imagino eu com aquela barriga e contando histórinhas pro meu bebe q ainda nem veio ao mundo, comprar aquls livros lindos especiais para o banho e torcer pra que ele se intrigue e queira viajar num livro por si só... acho q nem preciso dizer que gostei do texto né, beijussss....

Gisele disse...

Conheci o seu blog agora e já estou adorando comentar nele!!!..o post ficou mto bom e não vejo a hora nde ter mais tempo para comentar mais!!!!

bjus