Para quem frequenta o blog, já é sabido que eu adoro os textos da Marina Colasanti e tenho ainda mais simpatia por ela em saber que fazemos anos no mesmo dia! haha
É por esse e outros motivos que, hoje, na postagem literária trago um conto lindíssimo da autora, muito meigo e tocante que quis compartilhar com todos vocês, queridos leitores.
Espero que façam uma boa leitura e tenham o mesmo sentimento de admiração que eu tenho para com a autora.
Princesa Mar a Mar
Três filhas tinha o rei. E as três queria casar.
Há anos esperava paciente que crescessem, dia a dia medindo-lhes a altura e sopesando-lhes as tranças. Há anos pensava nos genros que lhe trariam, a ele que, não tendo filhos homens, precisava de espadas.
Afinal, seu olhar lhe disse que a primeira filha estava pronta. E a paciência deixou de ser necessária. Imediatamente mandou chamar o mais antigo e fiel de seus embaixadores e, diante da corte reunida, deu-lhe a ordem que pretendia vir a repetir mais duas vezes: que mandasse pintar o retrato da princesa e o levasse às cortes vizinhas em busca daquele que a faria rainha.
Logo, o Grande Pintor do Reino apresentou-se com seus longos pincéis, seus vidros de tintas e sua pequena barba. A princesa, vestida com ricas roupas, sentou-se para posar. Porém, passados dias e pronto o retrato, a corte desapontada sacudiu a cabeça. O quadro era belo, mas a princesa, ah! a princesa era muito mais bela que o quadro.
Decapitado, sem demora, aquele que ousara enfear a filha do Rei, um novo Grande Pintor foi nomeado, para herdar cores e tarefa. Novamente a princesa posou, e ricas eram suas roupas. Mas novamente a corte sacudiu a cabeça diante do resultado. Dessa vez, de cenho franzido. A beleza da jovem havia ficado ainda mais distante.
Ao terceiro Grande Pintor bastou olhar a princesa para concluir que não era tão grande quanto dele se esperava. Sozinho, foi entregar-se ao carrasco.
E eis que não havia mais pintores no reino, nem Grandes nem pequenos. Ou, se os havia, tratavam de esconder-se.
– Que isso não me impeça de cumprir a ordem – disse o Embaixador ao Rei que já se inquietava. – Levarei o retrato de outra maneira.
Escolheu no tesouro real a mais linda pérola, guardou-a num cofre pequeno, e partiu em sua carruagem rumo às fronteiras distantes do Norte.
Longa a viagem. Quando enfim chegou ao castelo daquele monarca, chegava com ele o inverno.
– Que mais me trouxe além da neve, Senhor? – perguntou-lhe o castelão do alto do trono.
O Embaixador contou-lhe então da filha do Rei. Que estava madura para casar. E quando o monarca pediu para ver seu retrato, aproximou-se, abriu o cofre pequeno e, sobre o fundo de veludo, exibiu a pérola.
– Assim é ela – disse, em voz alta, para que todos ouvissem. E erguendo a pérola, acrescentou: – Bela, rara, pálida. E preciosa.
No dia seguinte, partia de volta o Embaixador, para levar ao Rei a boa nova. A primeira das suas filhas seria Rainha das Terras do Norte.
Sem que muito tempo tivesse passado, já o Rei ordenava ao Embaixador que mandasse pintar o retrato da segunda filha e o levasse à corte do Sul.
– Pintar não é possível, sem pintor – respondeu o Embaixador. E acrescentou: – Outro é o retrato que levarei.
Recusando a chave do tesouro que o Rei lhe estendia, desceu aos jardins, aproximou-se da mais linda roseira, cortou com o punhal o botão mais perfeito, que protegeu debaixo do manto. Em seguida, subiu na carruagem e partiu.
Demorada, a viagem. Quando enfim chegou ao castelo daquele monarca, o verão chegava com ele.
– Que me trouxe, Senhor, além do Sol? – perguntou-lhe o castelão do alto do trono.
Então o Embaixador contou como o Rei o havia enviado porque a segunda de suas filhas estava madura para casar. E quando o castelão pediu para ver seu retrato, tirou de debaixo do manto o botão que havia desabrochado, e exibiu à corte a mais linda das rosas.
– Ela é assim – disse, bem alto, para ser ouvido por todos. Delicada, suave, rósea. A mais nobre de todas.
Fez uma pausa, procurou com um sorriso o olhar do monarca, e acrescentou: – E tem seus espinhos.
O pretendente hesitou. Mas era pouca a ameaça diante de tão linda flor.
Já no dia seguinte partia o Embaixador para levar a boa nova ao seu Rei. A segunda filha seria Rainha das Terras do Sul.
Mal havia chegado, e o Rei ordenou que levasse à corte do Oeste o retrato da filha menor. “E que retrato será esse?”, perguntava-se curioso.
Nem tesouro. Nem jardim. O Embaixador olhou a princesa que conhecia desde menina, olhou longamente a moça que ela havia se tornado. Depois, tomando um grande frasco de vidro, foi enchê-lo no mar.
Protegeu o frasco em uma bolsa de couro macio. Subiu na carruagem. E partiu pela terceira vez.
Íngreme, a viagem. E lenta, rumo às fronteiras montanhosas. Quando enfim chegou ao castelo no alto da mais alta montanha daquele reino, a tempestade chegava com ele.
– Senhor – perguntou o castelão em seu trono – , além da borrasca, que mais me trouxe?
– Trouxe-lhe a notícia de que a terceira filha do meu Rei está madura para casar – respondeu o Embaixador, contando ainda como a conhecia desde pequena, como a havia visto crescer.
E quando o monarca perguntou como era ela, adiantou-se, abriu a bolsa macia, tirou o frasco, levantando-o bem alto, para que todos vissem.
– Ela é como o mar – disse lentamente. – Profunda e misteriosa. Cheia de riquezas escondidas. Seus movimentos obedecem à Lua.
O monarca, que nunca havia visto o mar, olhava para o frasco e não via nada que correspondesse às palavras do Embaixador. Diante da corte havia apenas um frasco cheio de água transparente, sem segredos de peixes ou estrelas, sem conchas, sem ondas. Água, apenas, entre vidro. Nem sequer azul. Uma esposa assim, para que quereria?
Na manhã seguinte, ao partir, o Embaixador levava consigo o monarca. Desceram e desceram pelos caminhos pedregosos, até o mar. E chegando ao mar, apearam os dois, caminharam pela areia. A espuma alcançava suas botas sem que o monarca se decidisse a voltar. Ali estava o retrato, do qual não conseguia afastar os olhos. Mas por fim, subjugado, murmurou:
– Ela é grande demais para mim.
Pela primeira vez o embaixador regressou trazendo uma má notícia para o seu Rei. A terceira filha não seria Rainha das Montanhas do Oeste.
O tempo não pára porque uma filha de Rei está sem marido. Assim, suas irmãs casaram, bordaram pequenos enxovais, seus filhos nasceram. E estavam começando a engatinhar, quando chegou ao castelo a notícia de que no horizonte do Leste, onde não havia fronteira porque o Reino terminava no mar, uma vela havia surgido.
Cavaleiros velozes entregaram no castelo a informação de que um grande barco trazendo o Monarca dos Homens Navegadores acabara de atracar. E este se aproximava com seus guerreiros.
Preparou-se a defesa. Quando os estrangeiros chegaram, centenas de olhos escondidos espiaram por trás das seteiras. Mas os guerreiros traziam as espadas embainhadas, presos os escudos nos arreios.
– O que traz, Senhor, além dos bons ventos? – perguntou o Rei do alto do seu trono, quando o monarca apareceu finalmente à sua frente.
Então o visitante contou como havia sabido que a mais jovem das princesas estava madura para casar. Como, sem tê-la visto, a conhecia desde sempre. Como, conhecendo-a, queria casar com ela.
E porque o Rei parecia não entender, adiantou-se, abriu a camisa. Depois virou-se para que todos vissem. E todos viram. Tatuados em seu peito, peixes e conchas entrelaçavam-se nas ondas, estrelas-do-mar deixavam-se levar pela espuma.
– Aqui está o seu retrato – disse, alto, para que todos ouvissem – gravado sobre o meu coração.
A terceira filha do Rei também ouviu. Olhou para aqueles olhos, azuis de tanto se debruçarem sobre a água. E soube, com quanta alegria soube, que seu marido havia chegado.
COLASANTI, Marina. “A princesa mar a mar”, in Longe como o meu querer, editora Ática. São Paulo, 1997.