15 fevereiro 2011

O Anjo Negro

   Olá blogueiros!
   Tecnicamente falando, hoje não é o meu dia de postagem, mas como deixei de trazer-lhes o conto/crônica da semana no domingo, trago-o hoje. Espero que aprovem.


O Anjo Negro
   Com a vista cansada, perambulava pela cidade, uma alma solitária que vagava pelas esquinas da desilusão. Era eu de fato jovem, uma moça bonita, não lhes nego. No viço da idade. Rica, interessante, a pela clara com algumas sardas abaixo dos olhos e pelo nariz. Vestia-me impecavelmente, era elegante e estava sempre com os cabelos arrumados, os ruivos cabelos, brilhantemente alaranjados que estes eram. Os olhos tinham sua graça, azuis acinzentados, tempestuosos, mas o espírito... Repleto de uma tristeza pesada, jovem. Amargura era como costumavam chamar.

   Tinha eu um cigarro entre os dedos e um abandono pesaroso nas costas. Ódio, o fruto de meu amor reprimido, a discórdia plantada em meu coração tão precocemente. Assoprava delicadamente a fumaça cinzenta enquanto sorria vendo-a dissolver-se na chuva. Adorava esse ciclo vicioso de dissolver, destruir, despedaçar. O sorriso era malicioso, havia, sem dúvidas, maldade em meu rosto angelical. Eu me acharia sombria se por um acaso me encontrasse a caminhar daquela forma, sem destino em um dia chuvoso do inverno paulistano. Um anjo caído, indubitavelmente.
   Seria sensato de minha parte estar em casa, com a minha família. Todavia, eu era a moça má. Tinha feito algo ruim, muito ruim e eles passaram a me encarar com certo desprezo, nojo e até medo. Amor nenhum restava-me. Talvez pena, acreditavam que eu estava louca e lamentavam por isso, acreditavam ter grandes planos para mim. Desde quando eu era uma criança idealizavam o dia no qual me casaria com um rapaz tão rico quanto nós. Belo e ele me amaria, ah como amaria! Diziam que eu não precisaria trabalhar, se não quisesse (e muito provavelmente não quereria, segundo eles, principalmente elas), tornando-me assim uma socialite, quem sabe. Já naquela época eu as ignorava e desenhava crucifixos ensanguentados, monstros de olhos sem órbitas, cemitérios malignos com corvos, gatos pretos e até fantasmas. A mesma menina maligna de sempre, com ideias mórbidas e um rosto feito para passar a imagem totalmente contrária.
   Em algum canto próximo à esquina que eu agora contornava havia um teatro e, dentro dele, uma melodia triste e só ecoava em meus ouvidos, um apelo da solidão de um outro alguém. Adentrei o lugar pela porta de trás, provavelmente a entrada dos funcionários, entretanto, aquele recinto estava tão velho, tão inútil e caído às traças que poucos realmente se importariam com a estranha que ali ultrapassava seus limites. Muitas pessoas comuns em meu lugar não o teriam feito. O simples fato de burlar alguma regra desconhecida, de um lugar velho e sombrio, com uma música igualmente talvez não assustadora, mas desesperadora, os faria recuar ruas para nunca mais passar por aquele lugar. Eu nunca citei ser uma pessoa comum.
   Ao passar pela porta, senti arrepios pelos lugares de meu corpo que ainda estavam descobertos pelas roupas invernais. Lá dentro, o frio era ainda mais intenso. A brisa que soprava no corredor escuro era de uma temperatura cortante e junto com ela, o eco da música ficava ainda mais alto, como se convidasse-me. Apertei bem os bolsos do sobretudo creme e me abracei mais a ele, segui em frente pelo teatro escuro que remetia-me aos desenhos de minha infância e adolescência. Com o cigarro entre os lábios, fui observando a incrível arquitetura daquele lugar perdido. As várias colunas negras como mármore, ornamentadas por fios de linho dourados que formavam arabescos em torno de toda a estrutura cilíndrica. Eram 6 colunas no total e iam ao longo de todo aquele espaço por onde as correntes de vento lufavam sem dó. Ao final do corredor, alcancei uma escada que conduzia a várias portas negras reluzentes, uma ao lado da outra, que provavelmente levar-me-iam ao auditório. Os desenhos das portas seguiam moldes parecidos aos das colunas, mas agora eram visíveis ornamentos vermelhos, e as maçanetas de ouro reluziam ao longe, ainda que a poeira as encobrisse significativamente. Um pouco antes das escadas, o corredor ganhavam comprimento e tornava-se um enorme salão com vitrais vermelhos por todas as paredes e um magnífico lustre dourado pendendo do teto, delicadamente criado, com cada gota de luz descendo em uma cascata que resultava na quase perfeição humana. Era assustador.
   Determinada, sem muito mais temores do que a vida poderia me proporcionar, tirei o pó da maçaneta com os longos dedos brancos e abri-a, com o som sedutoramente ensurdecedor. Ao longe, no palco abaixo daquele imenso auditório, havia um solitário homem que tocava um violino negro e me encarava como se o tempo inteiro estivesse esperando por mim. Os olhos, que terríveis olhos, lembravam-me os dele. Meu amor reprimido, o homem a quem eu tanto me doara e que apenas fora capaz de me trair. Sorri para o violinista na plateia enquanto fumava meu cigarro e acompanhava seu concerto com o dedo, como um maestro faria. Sua música conversava comigo, era como se minha vida fosse posta em cifras, notas sombrias e funestas que muito lembravam a vida de Cristiana Amaral, a minha vida. E o homem que para mim tocava, repentinamente, não só se parecia como era ele, meu primeiro, maior e eterno amor, Alexandre Abreu.
   Disparei em sua direção gritando pelas escadas enquanto ele apenas mantinha aquele sorriso terno, aquele sorriso que tanto me irritava. Ao alcançar o palco, beijei cada parte de seu rosto, não podendo crer no que via. Comecei a chorar descontroladamente e de repente, estava batendo nele, com raiva. O traidor. Ele apenas me olhava apaixonadamente e despertei um pouco depois de ouvi-lo dizer...
- Eu te amo, Cristiana.
   Acordei confusa, com a cabeça doendo, gritando..
- NÃO!
  Encarei-me no espelho e vi as lágrimas correrem pelo meu rosto. Ao lado delas, uma gota de sangue sujava-me a imagem e, fui descendo o olhar assustada, já ciente do que acontecera. A mancha avermelhada espalhara-se por todo o meu sobretudo creme e, em minhas mãos havia uma faca que, aparentemente sangrava.
   Estava feito, eu sabia. A vingança estava consumada. Virei-me lentamente e encarei com o olhar vazio o corpo de Alexandre, morto pelas minhas mãos. Morto pelo meu ciúme doentio e por um processo que ele nunca poderia parar. Minha vida era uma loucura desesperadora, uma tragédia. Eu era uma tragédia, um monstro, um demônio. Nenhum pesar caiu sobre mim, apenas o ódio da traição e a lembrança de algo extremamente frívolo. Lembrei-me também dos desenhos de minha infância, de como sempre tivera essa tendência às coisas ruins. Um anjo enviado para o mal. Sorri.
   Encarei a caixa que antes guardava meus maços de nicotina e notei que estava vazia. Saí para comprar cigarro, com uma mancha do sangue do homem eternamente amado em meu sobretudo, com a imagem do funeral perfeito em minha cabeça, macabros pensamentos.


2 comentários:

Mayara disse...

Adorei o texto, ficou muito legal!
E bem macabro mesmo! *O*
Deve ter sido tenso ter matado a pessoa que amava, mas... muito satisfatóri ao mesmo tempo, considerando que é um traidor e a machucou demais... infelizmente, aqui se faz, aqui se paga, :)
Adorei a história, ficou bem legal, sendo que, adoro coisas macabras, hahaha :)
Enfim, parabéns pelo texto, muito bem escrito!

OBS: tem post novo lá no blog, cheio de novidades, e uma ainda é segredo... será que vc adivinha o que é? :x ahsauhsua :)

Beijos e até, te espero lá depois, viu :)
OBS 2: adorei a foto que você usou nesse post!

Aline Daiane. disse...

Muito lindo esse texto *-* você escreve muito bem! sou apaixonada por contos e cronicas, são muitos que leio, mas poucos que gosto e desses pucos esse é um *-*
adoorei o seu blog, mt lindo >.<
estou seguindo você também! e a medida do possivel, estarei sempre comentando :)
volte sempre me meu blog, se´ra bem vinda *-*

http://linediesel.blogspot.com/