20 março 2011

Diferentes olhares nos mesmos olhos azuis


   À distância, no alto da colina, ele a enxergava sempre a descrever círculos com as saias rodadas de seus vestidos negros. Ela, dona de um encanto puro que atiçava seus desejos. Ela, que também tinha sombras, uma escuridão nos profundos olhos azuis. Submersa em sonhos, luz e trevas.

   Não se tratava apenas de beleza. Quase todos no internato temiam Antonieta, a impetuosa Antonieta que dizia tudo que queria, embora não gostasse muito de dizer. Tudo incomodava na moça dos longos cabelos negros. Sua ousadia silenciosa, sua dispersão sombria, seu sorriso nostálgico, seu assustador olhar vigilante, as roupas góticas e até mesmo sua beleza, uma beleza desconcertante, errada e vulgar. Ninguém era amigo de Antonieta, ninguém sequer queria chegar perto dela.
   Ela também fazia parte da orquestra. Tocava violino e muitos alegavam que as cordas gritavam, tão finos eram os seus acordes, repelindo o toque da bruxa encarnada. Vez ou outra os alunos diziam que ensaiava durante a madrugada canções de gelar o coração e paralisar os ossos, tamanha era a sua influência sobre tudo que era tido como demoníaco. Muitos alegavam ter visto uma figura a caminhar pelos corredores e escadas históricas com um manto negro sobre a cabeça e um lampião nas mãos, todos concordavam que era ela. Um em especial a seguia em cada saída furtiva, sem que ela jamais soubesse. Nicolau - que tinha jeito de anjo protetor, candura de menino, bravura de homem e uma atração doente por Antonieta - caía em um abismo escuro e desolador.
   Todas as noites, no negrume mais agudo, próximo da hora de o sol começar a dar sinais de aparecer, ele a esperava atrás da gárgula que repousava no salão central do internato, aonde a nenhum aluno era permitida a presença naquele horário. Ambos não se importavam realmente com regras, ainda que as enxergassem de ângulos distintos.
   Naquela madrugada, como de costume, ele a esperava silenciosamente. Sabia que algumas vezes demorava, em outras vinha correndo e sumia como fumaça pelos ares. Um passo ecoou na ala norte, estava se aproximando, conhecia o som delicado de suas botas tocando o chão e de sua capa farfalhando. Havia daquela vez, entretanto, um som a mais. Algo que o entristecia estranhamente e lhe causava pena, dó. Passos que se aproximavam lentamente e um soluço. Estava chorando . Nicolau até então jamais tinha ficado tão desconcertado com a sua presença. Caiu no chão gelado, ainda escondido atrás da gárgula e a encarou passar com os olhos fora de órbita. Ela virou-se em sua direção e, fitando o monstro de pedra falou como se lesse seus olhos,
- Sei que me segue todas as noites, Nicolau. Sei que não tem medo de mim. Sinto-me segura com a sua vigília, é como se uma luz viesse atrás das sombras que me rondam. Mas... Mas...
    Nicolau, atônito, saiu de seu esconderijo e, pela primeira vez, permitiu-se encará-la sem proteções. Abaixou a capa negra que envolvia o lindo rosto alvo e secou as lágrimas que escorriam pelas maçãs. Nada mais queria se apenas pudesse ter sempre os olhos envenenados ao seu alcance.
- Antonieta... - O hálito fresco dele inebriou-a, enfraqueceu-a. Seus braços frágeis deixaram-se cair sem jeito. O frio de sua alma ardeu em chamas. Ela vacilou, abaixou o olhar, não podendo sustentar a pureza imaculada que se perdia no espírito iluminado do rapaz. - Antonieta.
- É perigoso...
    Mas ele não se importava. Quantas vezes quisera, desejara, esperara no anonimato pela sua tentação, pela bruxa que o enfeitiçara de solidão, de paixão...
   Segurou-a pelos braços e tocando cada parte de seu delicado rosto quis beijá-la. Antonieta, sensibilizada, arrepiou-se. O lampião que os iluminava caiu no chão e o barulho agudo dos cacos de vidro ecoou por todo o lugar. A escuridão despertou do silêncio e logo vários passos foram ouvidos vindos de todas as partes, apressados.
    Antonieta o encarou com dor no olhar e saiu correndo para a floresta, para a sua colina de sempre, aonde ele a ouvia conversar com alguém. Alguém que brigava com ela, que a assustava. O que ela considerara perigoso. Um choque perpassou sua mente.
- NÃO!
   Nicolau disparou atrás da moça, mal aguentando-se sobre as pernas de medo, mal podendo sustentar suas ideias, mal podendo crer que há pouco tempo a tivera tão frágil em suas mãos.
   No alto da colina, entre as árvores e a folhagem alta, Antonieta encarava algo horrorizada. Um homem que a seguia com um punhal na mão e que a olhava perigosamente, com um antigo amor reprimido nas feições doentias.
-Você pertencerá eternamente a mim! A mais ninguém, Antonieta! A mais ninguém!
   E diante de todos os alunos daquele internato, apunhalou-a no ventre, arrancando toda a sua vida e um urro de dor.
- NICOLAU!
   Nicolau acordou assustado com o grito, com o pesadelo. Suas mãos tremiam e ele, estranhamente, estava seguro e com seus colegas de classe ao lado, todos sentados em suas carteiras. A professora, próxima à lousa, apenas lia um conto gótico sobre uma paixão proibida entre um anjo e um demônio e chamava sua atenção por estar dormindo na aula. Lá fora – pôde ver pela janela, uma moça de cabelos negros e um vestido da mesma cor - , rodopiava com o olhar brilhando, encarando o nada. Nenhum louco estava atrás dela, não havia medo em seus olhos azuis e não via-se uma capa escondendo seu rosto. Após rodar ela sentou-se e pegou um violino que repousava ao seu lado. Com suas mãos delicadas começou a tocar e foi um dos sons mais lindos que Nicolau já ouvira, nada de assustador, nada de demoníaco. Ela não era uma bruxa ou sequer um demônio. Ele também não era nenhum anjo. Não representavam luz ou trevas, eram apenas humanos e, o melhor de tudo isso era que, na verdade, ela o encarava sorrindo graciosamente e, a maior e única barreira entre os dois era a janela amarela, que o remetia a um momento feliz. Antonieta.

7 comentários:

Vanessa disse...

Amei o texto, AH MELDELS! um dos melhores que eu já li aqui, amei mesmo.

Beijos, Vanessa.
This Adorable Thing

Gabriele Santos disse...

adoro a sua forma de escrever.
É muito intensa; Seus contos são sempre diferenciados.
Parabéns flor.

Raphaela disse...

Oieee meninas!!

Passando pra desejar um FELIZ DIA DO BLOGUEIRO!!

Parabéns pelo trabalho!

Beijos! :*

Amanda Cristina disse...

Quer trocar algum livro, marcador ou livreto que está parado na sua estante há anos?
Quer trocar comigo?
Dá uma olhada na lista que tenho para troca, através deste link:

http://www.primeiro-livro.com/2011/03/troco-livros-marcadores-e-livretos.html


Obrigada, Beijinhos!

Ana Ferreira disse...

Obrigada, Vanessa e Gabriele, pelos elogios! Os seus comentários são muito importantes para mim.

Raphi, feliz dia do blogueiro para você também!

Amanda, pode deixar que darei uma passadinha lá!

Robledo Cabral Filho disse...

De forma alguma eu imaginava que fosse tudo um pesadelo, haha. Confesso que prefiro a Antonieta que você descreveu na maior parte do texto: sombria, misteriosa, alada. É claro que essas características são meras extensões dos atributos naturais da garota, mas a idealização foi muito bem feita. Sem mencionar, é claro, o ritmo cativante do texto. Parabéns!

=*
http://livrosletrasemetas.blogspot.com/

Teorias de Gi disse...

Eu adorei este pelo ar sombrio e gótico não esperava sinceramente ler algo assim seu, mas adorei mesmo e acho q este devia ter uma continuação pq este amor parece ser muito lindo se levado adiante.