Desculpe - eu digo. - Desculpe por não atender o celularAlguns livros têm um poder distinto sobre mim. Há aquelas histórias que tocam o mais íntimo, aquelas que entretêm, aquelas que fazem chorar ou sorrir em alguns trechos e aquelas que, de alguma forma, penetram em nossa realidade, desmitificam convicções e desnudam a vida de uma maneira dolorosa. Garotas de Vidro, um dos lançamentos de maio da Novo Conceito, enquadra-se nesta última categoria.
p. 265.
Lia é uma jovem de 19 anos que sofre de anorexia nervosa e vive numa constante briga com a família. Ela costumava ser a melhor amiga de Cassie, portadora de bulimia desde os 12 anos e que perecia num estado depressivo até o dia de sua misteriosa morte, num motel afastado da cidade. O problema é que as duas estavam brigadas há algum tempo quando a tragédia ocorreu e Cassie ligou para Lia 33 vezes antes de partir dessa para uma melhor, uma descoberta que abalou todas as estruturas da vida da jovem, agora disposta a desvendar o que há por detrás desse mórbido mistério, mergulhando num abismo de tristezas e medos.
Antes de ler a sinopse do livro, não esperava por um conteúdo tão denso, difícil de se aceitar como a abordagem dos distúrbios alimentares da anorexia e da bulimia. E tudo em Garotas de Vidro é assim: pesado, realista. Lia é uma protagonista triste, daquelas que dificilmente os leitores gostam, apesar de haver uma explicação para seu comportamento: além de doente, a moça teve que enfrentar a separação dos pais no início da adolescência e a influência de Cassie, extremamente perturbada desde muito jovem. Também, como consequência do trauma da anorexia, a garota carrega consigo traços inegáveis de depressão que a levam a mutilar-se às escondidas, como se a dor pudesse ser o único sinal de que ainda está viva. Um prazer doentio em sofrer e levar uma sub-vida que apenas a afasta mais das outras pessoas.
Ao início, a leitura foi quase insuportável com o tapa de realidade que sinto ter recebido. Laurie Halse Anderson explora o mundo das anoréxicas tão meticulosamente que sentimos na própria pele o poder terrível da doença, todos os trejeitos de quem a carrega. São manias de contar as calorias para consumir, às vezes, 500 num dia (enquanto que uma dieta normal exige 2000), regimes malucos, exercícios físicos em excesso, laxantes para as que não conseguem miar (como as próprias doentes chamam o ato de vomitar), metas de pesar até 38,5kg e fazer distinções entre as pessoas pelo próprio IMC (Índice de massa corporal).
"Uma garota do teatro levanta a mão - IMC 20. Talvez 19,5."Além do enfoque na doença, que é exposto a todo o tempo, temos uma visão privilegiada da fragilidade das relações familiares sob a perspectiva de Lia, protagonista e narradora. Seu convívio com os pais é extremamente complicado. Enquanto mora com a atual família paterna, compostas pela madrasta, Jennifer, e a meia-irmã, Emma, não conversa com a mãe há meses e não faz esforço algum para mudar isso. Daí surge a morte de Cassie e, sob grandes dificuldades, a vida começa a dar sua grande guinada.
p. 79
E o leitor, aos poucos, vai se aproximando da personagem, tentando, de alguma forma, compreendê-la, torcendo para que ela enxergue o mal que está causando a si mesma. Foi tanta a comoção que a história me causou que cheguei a, inclusive, procurar por blogs de anoréxicas e bulímicas, as chamadas "pró-ana"(de anorexia) e "pró-mia"(bulimia), sentindo-me ainda mais aterrorizada pela condição em que as mesmas chegam a viver, como se a doença fosse um estilo de vida e todos os sadios fossem gordos ou invejosos. É cruel, lamentável e, por motivos óbvios, não compartilharei links para evitar a exposição dessas pessoas.
Cumprindo mais com a sua veia dramática que com qualquer outra, sem grandes romantismos e um mistério propriamente dito, trata-se de aqui de um livro de cunho extremamente pesado, propício apenas para aqueles que estiverem dispostos a privar suas mentes de preconceitos para entender um mundo à parte de quem perece em desgraça. Juvenil, talvez, mas pouquíssimo inocente ou com paixões prestes a explodir. Para os que esperarem por dinamismo e ação, sugiro outra leitura, pois tudo aqui corre em torno de poucas causas, sem reviravoltas ou surpresas.
Cheio de melancolia e tristeza, Garotas de Vidro fará com que, acima de tudo, seu leitor reflita sobre como enfrentar nossos demônios pode ser complicado, à mesma medida que necessário e doloroso, tão frágil quanto vidro. Mas em algum momento a ajuda está lá e nós simplesmente devemos aceitá-la e seguir em frente, sem olhar para trás.
Informações técnicas
Título: Garotas de Vidro
Título original: Wintergirls
Autora: Laurie Halse Anderson
Tradução de: Ana Paula Corradini
Editora: Novo Conceito
Número de páginas: 272
ISBN: 978-85-8163-011-3
Gênero: Drama; Ficção; Literatura norte-americana
Laurie Halse Anderson fingia que era um urso polar quando ia para a escola caminhando sobre a neve de Syracuse, Nova York. Quando menina, datilografava na velha máquina de escrever de seu pai por horas, escrevendo colunas de jornal, histórias e letras. Ela adorava ver seu pai escrever poemas e ler as histórias no chão de seu escritório. Seu livro favorito é o dicionário. Ela tentou ler todos os livros da biblioteca da escola, um lugar paradisíaco. Laurie mora no extremo norte do estado de Nova York com seu marido, Scot, e o cachorro deles, Kezzie. Scot projetou e construiu um chalé para Laurie, onde ela escreve todos os dias. Além de escrever, ela adora jardinagem, correr e estar com sua família.
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