15 janeiro 2013

Fahrenheit 451, de Ray Bradbury

Passar as emoções conflitantes de Fahrenheit 451 para um leitor é uma tarefa, de um certo ponto de vista, fácil. E dolorosa. Basta que imaginemos um mundo completamente alienado e distópico em que os bombeiros, em vez de apagar as chamas e salvar vidas, incendeiam bibliotecas e não poupam aqueles que resistem às regras do regime ao se colocar na frente de seus livros, como forma de protesto e desespero. O que mais perturba neste prestigiado livro de Ray Bradbury, no entanto, é a passividade da qual os humanos modernos são dotados, indiferentes ao conhecimento, cegos por vontade própria.

Mostrado ao leitor de uma perspectiva bastante contraditória, o protagonista Montag é um bombeiro, como quase todos os outros homens foram em sua família, e, até certo momento da narrativa, leva uma vida normal  - e vazia, pois todas as vidas normais em Fahrenheit 451 são vazias - ao lado de sua esposa, Mildred. Tudo muda, porém, no instante em que ele conhece Clarisse, uma nova vizinha bem jovem e contestadora que vive lhe fazendo perguntas às quais ele é incapaz de responder. Despertado por uma súbita consciência, então, cheio de dúvidas e incertezas a respeito da vida que leva e de tudo que tem feito, vivendo ao lado de uma mulher com a qual ele nem sequer tem lembranças, o personagem passa a mudar muitas de suas atitudes e, entre as mais perigosas, cobiça o que há de tão revelador por detrás dos livros a ponto de torná-los nocivos a sua sociedade ignorante.
"A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?"
Embora reconheça a premissa tipicamente distópica e muito interessante da qual o livro é dotado, iniciei a leitura meio reticente, sem ter certeza quanto àquilo que me esperava e estranhando o estilo literário de Ray Bradbury. Algo de ficção científica, uma frieza estranha numa sociedade ainda mais bizarra e indiferente em que até mesmo as mães tratam seus filhos como objetos. Um dia desses, no entanto, comecei a ler a história a sério e percebi que minha primeira reação havia sido equivocada, pois ainda que conte com suas excentricidades e sua parcela de personagens apáticas, Fahrenheit 451 é um livro que, ao menos, com toda a sua engenhosidade, faz o leitor pensar.

Colocado no mesmo patamar de obras como Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley) e 1984 (George Orwell), sendo as três exemplos renomados de distopias modernas, há também uma crítica ferrenha direcionada à alienação da sociedade e embutida à problemática de Montag. Abdicando de livros, da educação, do conhecimento e muitas vezes da própria vida, as personagens da obra seguem roteiros cotidianos dados por aparelhos de televisão, ligando-se apenas a alguns de seus programas como se significassem tudo em sua existência medíocre. Não há conversas em rodas, grupos de discussões ou mentes pensantes. Há apenas a ignorância e a cegueira de um momento apelidado, inclusive, de Segunda Idade das Trevas. Aos bons entendedores, Ray Bradbury utiliza-se da televisão como artifício para aludir negativamente aos tantos reality shows da contemporaneidade dos quais somos telespectadores.

A realidade paradoxal de Montag e cada nova confusão em sua mente tornam a obra tensa, instigante e ainda mais significativa para quem, como muitos de nós, é apaixonado pelos livros e pelo poder que exercem. A personagem foi bem construída, já tendo conhecido os dois lados da moeda e, mesmo assim, sendo capaz de se rebelar contra todos os valores que defendeu um dia, após um momento decisivo da história. Clarisse, por sua vez, é jovem demais e conheceu muito da vida em nome de sua curiosidade clandestina. É ela que, através de palavras e perguntas, dá ao protagonista o direito da dúvida. Mildred, todavia, a esposa problemática de Montag, é a alegoria mais clara da omissão, quem segue todas as regras impostas, independentemente de quais sejam elas. E não muito atrás vem Beatty, o chefe dos bombeiros, o qual já teve acesso a livros demais e, de uma forma até mesmo passional, passou a desprezá-los, rendendo grandes conflitos à obra de Bradbury.

Contando com pouco mais de 200 páginas, uma constante atmosfera de tensão, dúvidas, receios, aceitações e renúncias, mais psicológica que repleta de ação, como pode se esperar por parte de muitos, Fahrenheit 451 é uma leitura rápida, necessária e dotada da capacidade de deixar um gosto amargo no leitor que só os grandes questionamentos e questionadores possuem.
[...] Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum. Deixe que ele se esqueça de que há uma coisa como a guerra. Se o governo é ineficiente, despótico e ávido por impostos, melhor que ele seja tudo isso do que as pessoas se preocuparem com isso. Paz, Montag. Promova concursos em que vençam as pessoas que se lembrarem das letras das canções mais populares ou dos nomes das capitais dos estados ou de quanto foi a safra de milho do ano anterior. Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-os com "fatos" que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente "brilhantes" quanto a informações. Assim elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside melancolia. Todo homem capaz de desmontar um telão de tv e montá-lo novamente, e a maioria consegue, hoje em dia está mais feliz do que qualquer outro homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. [...]
Informações técnicas
Título: Fahrenheit 451
Título original: Fahrenheit 451
Autor: Ray Bradbury
Tradução de: Cid Knipel
Editora: Globo de Bolso
Número de páginas: 256
ISBN: 978-85-250-4644-4
Gênero: Ficção científica norte-americana

Ray Bradbury é mais conhecido pelas suas obras Crônicas Marcianas e Fahrenheit 451. Morreu aos 91 anos, nos Estados Unidos, a 6 de junho de 2012.

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