22 dezembro 2011

Introduzindo Zafón: 3º capítulo de "El Prisionero del Cielo" traduzido

Chegamos então ao fim das postagens sobre Carlos Ruiz Zafón e "El Prisionero del Cielo", continuação de "A Sombra do Vento". Deixo meus agradecimentos ao autor parceiro Breno Melo, por ter disponibilizado a oportunidade, e a todos que acompanharam. Boa leitura!
 
Para acompanhar as outras postagens, clique nos títulos abaixo:
            * Introduzindo autores #1: Carlos Ruiz Zafón
            * Introduzindo Zafón: 1º capítulo de "El Prisionero del Cielo" traduzido 
 
El Prisionero del Cielo, de Carlos Ruiz Zafón (no Skoob) | Site oficial 
 
Barcelona, 1957. Daniel Sempere e seu amigo Fermín, os heróis de A Sombra do Vento, voltam novamente à aventura para enfrentar o maior desafio de suas vidas. Justamente quando tudo começava a lhes sorrir, um personagem inquietante visita a livraria Sempere e ameaça revelar um terrível segredo enterrado há décadas na obscura memória da cidade. Ao conhecer a verdade, Daniel compreenderá que seu destino o leva inexoravelmente a enfrentar a maior das sombras: a que está crescendo em seu interior. Transbordante de intriga e emoção, El Prisionero del Cielo (O Prisioneiro do Céu) é um romance magistral onde os leitores de A Sombra do Vento e O Jogo do Anjo convergem através da magia da literatura e que nos conduz para o enigma que se oculta no coração do Cemitério dos Livros Esquecidos.
Os créditos da tradução a seguir são devidos integralmente ao autor Breno Melo. Não copie o conteúdo, total ou parcial, sem autorização do mesmo.

3

Contra a luz que vinha da rua, sua silhueta parecia um tronco açoitado pelo vento. O visitante vestia um terno escuro de corte antiquado e desenhava uma figura sombria apoiada em uma bengala. Ele deu um passo à frente, mancando visivelmente. A claridade da lâmpada que repousava sobre o balcão revelou um rosto vincado pelo tempo. O visitante me observou uns instantes, avaliando-me sem pressa. Seu olhar tinha alguma coisa de ave de rapina, paciente e calculista.

— O senhor é o sr. Sempere?
— Eu sou Daniel. O sr. Sempere é meu pai, mas não se encontra no momento. Posso ajudá-lo em algo?

O visitante ignorou minha pergunta e começou a andar pela livraria examinando tudo palmo a palmo com um interesse que beirava a ganância. A manqueira que o afligia fazia pensar que as lesões que se ocultavam debaixo daquelas roupas fossem palavrões.

— Lembranças da guerra — disse o estranho, como se tivesse lido minha mente.

Acompanhei-o com o olhar na inspeção da livraria, imaginando onde ele iria lançar âncoras. Tal e como havia imaginado, o estranho parou diante do armário de ébano e vidro, relíquia da fundação da livraria em sua primeira encarnação lá pelo ano de 1888, quando o tataravô Sempere, então um jovem que acabava de voltar de suas aventuras como emigrante por terras do Caribe, havia tomado dinheiro emprestado para adquirir uma antiga loja de luvas e transformá-la em uma livraria. Aquele armário, lugar de honra da loja, era onde tradicionalmente guardávamos os exemplares mais valiosos.

O visitante se aproximou dele o suficiente para que seu hálito se desenhasse no vidro. Ele apanhou uns óculos que levou aos olhos e começou a estudar o conteúdo do armário. Seu gesto me lembrou uma doninha examinando os ovos recém-postos num galinheiro.

— Belo móvel — ele murmurou —. Deve valer a pena.
— É uma relíquia de família. Na maior parte tem valor sentimental — eu disse, incomodado com as apreciações e elogios desse cliente peculiar que parecia taxar com o olhar até o ar que respirávamos.
Depois de um tempo guardou os óculos e falou em tom pausado.
— Eu soube que trabalha com os senhores um cavalheiro de gênio reconhecido.
           
Como não respondi imediatamente, virou-se e me deu um dessas olhadas que fazem envelhecer quem as recebe.

— Como vê, estou sozinho. Se o cavalheiro por acaso me disser que título deseja, com muito prazer eu o procurarei para o senhor.

O estranho lançou um sorriso que parecia tudo, menos simpático, e assintiu.

— Vejo que os senhores têm um exemplar de O Conde de Monte Cristo nesse armário.
— Não era o primeiro cliente que reparava nesse livro. Repeti-lhe o discurso oficial que tínhamos para tais ocasiões.
— O cavalheiro tem bom olho. Trata-se de uma edição magnífica, numerada e com páginas ilustradas por Arthur Rackham, proveniente da biblioteca pessoal de um ávido colecionador de Madri. É um ítem único e catalogado.

O visitante escutou com desinteresse, concentrando sua atenção na consistência dos painéis de ébano das prateleiras do armário e mostrando claramente que minhas palavras o entediavam.

— Para mim, todos os livros parecem iguais, mas eu gosto do azul dessa capa — replicou em tom depreciativo. — Vou ficar com ele.

Em outras circunstâncias, eu teria dado um pulo de alegria ao vender aquele que provavelmente era o exemplar mais caro de toda a livraria, mas havia algo na ideia de que essa edição fosse parar nas mãos desse personagem que me revirava o estômago. Algo me dizia que, se esse tomo saísse da livraria, ninguém jamais leria sequer o primeiro parágrafo.

— É uma edição muito cara. Se o cavalheiro assim desejar, posso lhe mostrar outras edições da mesma obra em perfeito estado e a preços mais acessíveis.

As pessoas com a alma pequena sempre tentam diminuir os demais; e o estranho, que intuí que teria podido esconder a sua na ponta da um alfinete, deu-me a sua mais intensa olhada de desdém.

— E que também têm a capa azul — acrescentei.

Ele ignorou a impertinência de minha ironia.

— Não, obrigado. O que eu quero é esse. O preço não importa.

Assenti a contragosto e me dirigi ao armário. Apanhei a chave e abri a porta de vidro. Eu podia sentir os olhos do estranho cravados em minhas costas.


— Todas as coisas boas sempre estão trancadas à chave — comentou em voz baixa.

   Peguei o livro e suspirei.

   — O cavalheiro é colecionador?
   — Poderíamos dizer que sim. Embora não de livros.

Virei-me com o exemplar na mão.

— E o que o senhor coleciona?

Novamente, o estranho ignorou minha pergunta e estendeu a mão para que eu lhe entregasse o livro. Tive que resistir ao impulso de repôr o livro no armário e passar a chave. Meu pai não teria me perdoado se tivesse deixado passar uma venda assim com os tempos que corriam.

 — O preço é de 35 pesetas — anunciei antes de lhe entregar o livro com a esperança de que a cifra o fizesse mudar de ideia.

Ele assentiu sem pestanejar e puxou uma nota de cem pesetas do bolso daquele terno que não devia valer nem um centavo. Perguntei-me se não seria uma nota falsa.

— Lamento não ter troco para uma nota tão grande, cavalheiro.

Eu o teria convidado a esperar um momento enquanto corria ao banco mais próximo para obter troco e, também, para me certificar de que a nota era autêntica, mas não queria deixá-lo sozinho na livraria.

— Não se preocupe. É genuína. O senhor sabe como é possível ter certeza?

O estranho levantou a nota contra a luz.

— Observe a marca d'água. E estas linhas. A textura...
— O cavalheiro é um especialista em falsificações?
— Tudo é falso neste mundo, meu jovem. Tudo menos o dinheiro.

Ele me pôs a nota na mão e me fez fechar os dedos sobre ela, dando-me tapinhas nos nós dos dedos.

— O troco eu lhe deixo como crédito para minha próxima visita — ele disse.
— É muito dinheiro, senhor. Sessenta e cinco pesetas...
— Mixaria.
— Em todo caso eu lhe farei um recibo.
— Confio no senhor.

O estranho examinou o livro com um ar indiferente.

 — Trata-se de um presente. Vou lhe pedir que os senhores façam a entrega pessoalmente.

Hesitei um instante.

— Em princípio não realizamos entregas, mas neste caso com muito prazer faremos pessoalmente a entrega sem cobrar nada. Posso lhe perguntar se é aqui mesmo na cidade de Barcelona ou...?

— É aqui mesmo — ele disse.

A frieza de seu olhar parecia delatar anos de raiva e rancor.

— O cavalheiro deseja incluir alguma dedicatória ou algum bilhete pessoal antes que o embrulhe?

O visitante abriu o livro na página de rosto com dificuldade. Percebi então que sua mão esquerda era postiça, uma peça de porcelana pintada. Pegou uma caneta-tinteiro e escreveu umas palavras. Devolveu-me o livro e deu meia-volta. Observei-o enquanto mancava em direção da porta.

— Por gentileza poderia me dizer o nome e o endereço onde deseja que façamos a entrega? — perguntei.

— Está tudo aí — ele disse, sem olhar para trás.

Abri o livro e olhei a página com a inscrição que o estranho havia deixado de seu próprio punho e letra:

Para Fermin Romero de Torres, que voltou
dentre os mortos e tem a chave para o futuro.
13

Então ouvi a sineta na entrada e, quando olhei, o estranho havia ido embora.

Corri até a porta e me assomei à rua. O visitante se afastava mancando, perdendo-se entre as silhuetas que atravessam o véu de névoa azul que varria a Rua Santa Ana. Eu ia chamá-lo, mas mordi a língua. O mais fácil teria sido deixá-lo ir simplesmente, mas o instinto e minha tradicional falta de prudência e de senso prático me fizeram segui-lo.
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Uma boa quinta-feira a todos, sem resenha, que voltará ao ar novamente na próxima semana.

      

3 comentários:

Andressa Tomaz disse...

Oi Ana!
Muito legal essa sua introdução ao autor. Nunca li nenhuma obra de Zafón e já ouvi tantos elogios que sinto até vergonha! Assim, você dá uma oportunidade justamente a nós, que não conhecem ainda :)
Ótima quinta para você também!

Beijos!

Patricia Ferreira disse...

Oii,

Eu també não conhecia a obra de Záfon, parece um livro muito bom e intrigante... Infelismente irei demorar muito para ler este livro, mas já pretendo comprá-lo... asuhasusahusah

Beijos, Patty
Cartas para Ficção

Kassiane Cardoso disse...

O post(3º capítulo)já está aqui no blog a um tempo,mas só agora pude ler ele...gostei muito!
Valeu! por colocarem no blog...

Beijos =D