21 agosto 2012

Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez

"O inocente trem amarelo que tantas incertezas e evidências, e tantos deleites e desventuras, e tantas mudanças, calamidades e saudades haveria de trazer para Macondo."
p. 215
Sempre ouvi falarem por aí que eu deveria ler Cem Anos de Solidão. Embora todos estivessem afins na retórica, os motivos eram diversos: Gabriel García Márquez escreve como ninguém, o livro mudaria minha concepção de vida e, ainda, entre listas elaboradas por profissionais da pedagogia e da literatura de quais 10 títulos levariam para passar numa ilha deserta, a obra colombiana, digna do Prêmio Nobel de Literatura, era constantemente evocada. Daí para um prelúdio de leitura repleto de expectativas positivas, como o leitor já poderia imaginar, foi meio caminho andado.

Sintetizar exatamente aquilo de que se trata a obra de Gabito é um desafio, tamanha a amplitude que esta carrega ao retratar o clã dos Buendía, uma estirpe familiar centenária portadora da síndrome dos amores tórridos e mal resolvidos, das paixões pela guerra e pelo anarquismo, dos cultos a uma magia antiga e à sabedoria de um cigano capaz de compreender os mecanismos da vida mas, especialmente, da solidão.


A história da família Buendía tem seu início junto ao do século, através da união de José Arcadio e Úrsula: ele, um homem inquieto e inventivo, ela, uma mulher forte, cheia de crendices e determinada a começar e zelar por uma geração de grandes homens e mulheres. Quando o casal está esperando por seu primeiro filho, então, em busca de um local de terras férteis para se estabelecer, acaba se deparando com uma região privilegiada e inóspita na qual, ao lado de outras famílias, fundam o vilarejo de Macondo. Jovens e cheios de vida, trabalham para a construção de um local agradável e sem desigualdades. Arcadio, usando sua inventividade, projeta as casas de maneira que o sol as ilumine todas com a mesma incidência, que tenham o que plantar, comer e, também, pequenas criações de animais dos quais possam se utilizar. Inicia-se daí um ciclo de prosperidade e crescimento, até o momento em que uma caravana de ciganos, curiosa pelo novo vilarejo, aproxima-se e traz consigo Melquíades, um homem que se demonstra como grande explorador e conhecedor dos mistérios do mundo, das tecnologias e das ciências, despertando em José Arcadio um ímpeto feroz de aventura e solidão numa busca pelo além-mar e pela sabedoria do homem evoluído.

Neste ínterim, nascem os primeiros descendentes da estirpe, Arcadio, como o pai, e Aureliano, outro nome que haveria de se repetir pelo século em que viveram os Buendía, homens movidos por suas paixões e pela sina solitária de toda a família. Destes em diante, o leitor poderá acompanhar uma série de outras personagens que surgirão em dezenas, frutos de relações de amores e, principalmente, desamores entre os moradores de Macondo numa profecia que se concretiza aos poucos e ganha forma no desejo profano que o sobrinho sente pela tia, na pureza santíssima da mulher mais bela já vista em todo o mundo e na morte como uma velha amiga, acolhida por cada Buendía como mais um fato comum e irrefutável. 

Através de uma narrativa tida como representante oficial de um estilo que ficou conhecido como realismo mágico, Gabriel García Márquez conta suas histórias com um vocabulário riquíssimo, mas muito fluido e de ritmo fácil. Aqui a trajetória do clã de Macondo é escrita à semelhança do que poderia ser a história de qualquer outra família residente de um vilarejo interiorano, marcado pelo isolamento e pelas superstições pagãs. Com estes elementos, entretanto, o autor constrói uma obra genial, marcada pela intensidade com que os sentimentos afloram e por uma magia que se faz presente de maneira alegórica muito bem colocada em que os feitos do homem ultrapassam os limites da razão.

Cem Anos de Solidão também é um livro repleto de metáforas. Por praticamente não contar com diálogos em suas quase 400 páginas, tem todo o seu brilho contido na narração e na descrição eloquentes de Márquez. O crescimento de Macondo e a multiplicação dos Buendía podem se equiparar facilmente à globalização. Ao longo da obra, acompanhamos os reflexos da imigração, especialmente a europeia e norte-americana para as terras caribenhas, trazendo consigo a arte, a ciência e o caos da cidade politizada em que o governo e a justiça falham e provocam a revolta do povo que, há tanto tempo, em seu regresso tecnológico, vivia em paz e passou a conhecer a guerra depois. Mais forte é a presença, contudo, das analogias feitas entre a natureza animalesca e a dos Buendía, que vivem cercados de formigas e escorpiões, os quais se multiplicam como pragas, tais como a própria estirpe da família solitária. Estirpe que, novamente, como pude observar em dicionários, é uma palavra de ordem biológica utilizada para dar nome a um grupo de ancestrais compartilhadores de semelhanças genéticas, designada para vírus, gado e até mesmo roedores. Utilizada, nesta obra, para a família em torno da qual gira toda a história. 

Apesar de não ser a maior fã de metalinguagem, comecei esta resenha dizendo que já havia recebido várias indicações para que lesse Cem Anos de Solidão logo, sem entender bem os motivos. Agora, uma vez tendo concluído a leitura da obra com verdadeira admiração, só posso concluir este enorme texto aconselhando fervorosamente que você vá, tão breve quanto possível, com seus próprios olhos, conferir o livro incrível e atemporal que Gabriel García Márquez escreveu uma vez, no ano de 1967, numa Colômbia que se preparava para receber o primeiro Prêmio Nobel de Literatura em toda a América Latina.
"Choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias. Houve épocas de chuvisco em que todo mundo pôs a sua roupa de domingo e compôs uma cara de convalescente para festejar a estiagem, mas logo se acostumaram a interpretar as pausas como anúncios de recrudescimento. O céu desmoronou-se em tempestades de estrupício e o Norte mandava furacões que destelhavam as casas, derrubavam as paredes e arrancavam pela raiz os últimos talos das plantações." p. 299
Informações técnicas
Título: Cem Anos de Solidão
Título original: Cien anõs de soledad
Autor: Gabriel García Márquez
Tradução de: Eliane Zagury
Editora: Record
Número de páginas: 394
ISBN: 85-01-01207-6
Gênero: Romance colombiano


Gabriel García Márquez costuma dizer que todo grande escritor está sempre escrevendo o mesmo livro. “E qual seria o seu?”, perguntaram-lhe. “O livro da solidão”, foi a resposta. Apesar disso, ele não considera Cem anos sua melhor obra (gosta demais de O outonodo patriarca, onde o tema também está presente). O que importa? O certo é que nenhum outro romance resume tão completamente o formidável talento deste contador de histórias de solitários — que se espalham e se espalharão por muito mais de cem anos pelas Macondos de todo o mundo.

Uma boa terça-feira a todos!




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