08 setembro 2012

Adormecida, de Anna Sheehan

Uma jovem que dormiu por mais de 60 anos, conservando sua aparência bela e angelical e que, num dia, repentinamente, foi despertada pelo beijo de um incrível rapaz, um herói, um príncipe. Esta ingênua descrição seria o suficiente para convencer qualquer leitor de que "Adormecida", semelhante até no título, é uma releitura do clássico sobre a princesa Aurora, "A Bela Adormecida". Fatal engano, contudo. E feliz também, pois a história que aqui possuímos tem apenas esses fatos que remetem à outra, sendo muito mais dura, triste, até bonita, mas especialmente visceral, de tal maneira que atingiu em cheio minha sensibilidade, fazendo-me derrubar muitas lágrimas, como insisto em deixar claro desde o princípio.

Rose Fitzroy nasceu cercada de regalias, no berço de uma família extremamente poderosa que tinha em suas mãos uma das empresas mais poderosas do mundo moderno, a Unicorp. Sua vida, contudo, foi uma sequência de passagens interrompidas pela obsessão de seus pais ao moldá-la conforme suas vontades e submetê-la a um procedimento cruel chamado estase: a cada vez que precisavam viajar, ir a uma festa ou simplesmente quando cansavam de suas atitudes, a menina se deitava numa câmara de vidro em que gases químicos eram lançados por meio de suas vias respiratórias para impregnar seu corpo e impedir que ele envelhecesse, mergulhando num estado de letargia e sono absoluto, perdendo horas, dias, meses e anos da vida que continuava a acontecer ao seu redor, sem poder possuí-la, estática no tempo. Já habituada ao tratamento, contudo, a moça vai crescendo lentamente, nos momentos em que seus pais ficam em casa e se acostuma a aquiescer as vontades de todos, não tendo a sua própria, acreditando que é má e egoísta simplesmente por contestar a ideia da estase.

Até o dia em que se apaixona por seu melhor amigo, um rapaz que viu crescer e que, enfim, encontrou-se com ela no auge da adolescência de ambos, fazendo-a temer os longos períodos de sono e de desaparecimento de um mundo que continua a pulsar. Rose, pela primeira vez na vida, sente vontade de envelhecer como os outros, de ser levada pelo tempo, de construir bases sólidas, relacionamentos e ser independente. Mas também esta vontade seus pais lhe tomam, dilacerando seu coração ao sacrificar o amor de Xavier e mergulhar numa estase profunda da qual só despertaria 62 anos depois, num mundo totalmente novo, sem aqueles que conhece, onde tudo lhe causa medo, dor e tristeza.

É nesta atmosfera insuportável em que Rose é encontrada no subsolo de um edifício moderno por Bren, o qual fica abominado pelo fato de a moça, famosa em todo o mundo pelo nome de seus pais, estar viva e, principalmente, por ter ficado em estase durante um período tão longo. A partir daí, novos membros da Unicorp, com a qual o rapaz também tem ligações pelo trabalho de sua família, passam a ficar responsáveis pela tutela de Rose, garantindo-lhe segurança e cuidados até o dia em que completará 18 anos (sua forma estática a deixou com 16, apenas) e assumirá a presidência da empresa como herdeira principal. Enquanto isso não acontece, ela deve levar uma vida comum em meio à sociedade, frequentando a escola, fisioterapia para seu corpo quase atrofiado e o consultório de uma psicóloga que tenta ajudá-la a compreender os longos vazios em sua mente e a dor imensa que aloja em seu coração perdido e assustado.

Dona de uma narração eletrizante e dura, simultaneamente, Anna Sheehan, de outra maneira, não poderia ter sido tão eficaz ao redigir um livro juvenil de tamanha complexidade do qual, confesso, pouco esperava. Apesar de, primeiramente, todo o contexto tecnológico da nova sociedade em que Rose é obrigada a viver na qual há, inclusive, viagens interplanetárias e supertablets utilizados em salas de aula, substituindo os nossos ultrapassados cadernos, há no texto da autora um ímpeto de humanidade tão forte que cada sentimento que passa pela mente perturbada da protagonista (e narradora) acaba também tocando o leitor, confundindo-o, fazendo-o sofrer e compreender o poder das escolhas numa realidade em que tudo é aceito sem resistência.

Rose é o tipo de protagonista do qual podemos tentar sentir raiva e que, ao final, todavia, sobressai um sentimento de pena de quem foi educado para seguir as vontades alheias, as quais tomou por suas. Ao mesmo tempo, é uma personagem muito doce, que o leitor a todo o tempo quer acalentar quando flashes de seu passado, especialmente com Xavier, inundam sua mente com um sentimento de saudade e tristeza, principalmente esta última. E também todas as outras personagens de Adormecida tiveram uma atenção especial da autora, muito bem compostas, especiais à sua maneira. Bren é amigo, forte, determinado, quase intransponível em tratando-se de paixão, mas frágil por dentro, em algum lugar inquietante de seu espírito. Otto, por sua vez, está para mim como um dos mais especiais de todo o elenco, uma espécie de experimento da Unicorp que tem embriões humanos e alienígenas em sua composição, de bondade admirável e uma enorme dor na alma que se comunica com a de Rose.

Em Adormecida, ao contrário do que vemos em tantos outros juvenis, não temos amores que brotam do nada nem tampouco herdeiros que levam uma vida bacana de riquezas e libertinagens. Contrariando os paradigmas, temos, sim, um indício de paixão meio fracassada, uma amizade delicada que se sustenta na confiança lenta, uma melancolia desoladora que arde os olhos de quem o lê e, ainda, uma classe diferente dos humanos que batalhou por seus direitos e foi parcialmente destruída em nome do preconceito, além de uma protagonista que tenta aceitar e compreender a si mesma, deixando para trás toda uma vida fracassada por um futuro incerto e duro de se aceitar. A favor de Rose, o leitor conhecerá também a sua arte, que já lhe rendeu tantas alegrias e mantém viva, através de seus traços precisos e da análise sensível, sua mais amada memória do passado.

Atrelando a inovação de uma humanidade em desenvolvimento e a força de sentimentos mais antigos e duradouros que as próprias estases da protagonista, tenho para mim que fui presenteada e também dilacerada por Anna Sheehan com um livro de extrema delicadeza e que, certamente, ainda vai emocionar muitos outros leitores por aí.

Eu, durante a leitura

Informações técnicas
Título: Adormecida
Título original: A long, long sleep
Autora: Anna Sheehan
Tradução de: Camile Mendrot
Editora: Lua de Papel (cortesia)
Número de páginas: 272
 ISBN: 978-85-63066-48-0
Gênero: Literatura juvenil

Anna Sheehan nasceu no norte do Alasca, uma região um tanto isolada do mundo, desde cedo tornou os livros seus mais queridos amigos. Estudou literatura e atuação, elegendo Shakespeare como seu autor preferido. Atualmente vive em um rancho na zona rural do Oregon, com a filha e a mãe.

Um bom final de semana a todos,

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