10 janeiro 2013

Houve uma conversa, havia uma história

Fonte: Ilovemigs

Como leitores, temos uma capacidade admirável, até necessidade - arriscaria dizer -, de ir além da realidade e inventar, fantasiar com novas e velhas histórias. De tão envolvidos com os caminhos pelos quais seguem a vida de uma personagem, tornamo-nos protagonistas de nossos próprios romances. Nos meus, então, há sempre aquele cenário rústico, cheiro de livros antigos no ar, uma biblioteca, xícara de café fumegante em algum lugar ao fundo e uma conversa descompromissada, com palavras que se perdem em meio às prateleiras abafadas da eloquente literatura clássica. Um dia desses, no entanto, houve uma livraria. Houve uma conversa e George Orwell, sempre bem oportuno.

Esta moça olhava as prateleiras, buscando incansavelmente pelo mesmo volume. Ainda que tivesse o lugar em alta estima, com seu acervo respeitável, reclamava da disposição literária. Mas cadê a ordem alfabética? Cadê o gosto que essa gente deveria ter pelos livros? Perdeu-se na liquidação de ano novo... Insistente, chata, meio maníaca com esse tipo de organização - só com esse -, poderia passar horas vasculhando o mesmo lugar. De tantas capas semelhantes, de tantos títulos pretensiosos, de poucas e muitas palavras que prometiam uma grande epopeia. E sempre haveria um livro novo. Uma história ansiosa para sair das páginas e olhar nos olhos do leitor apaixonado. Desse jeito que só Chico Buarque entende. Desse jeito pelo qual os românticos sempre se deslumbram.

Mas aí, com aquele seu ímpeto revolucionário, com aquela irreverência meio oculta e a genialidade travestida que continham, olhou para os George Orwell largados ali por perto, empregando metonímia e tudo. Parou, fitou-os carinhosamente  - de um jeito que só as leitoras sabem, como uma mãe a ver seu filho injustiçado -, e foi surpreendida por uma conversa da qual ela, sem se dar conta, começava a virar interlocutora.

- Você gosta desse tipo de livro?

Sorriso, leitora abandonando imersão em livrarias, súbita consciência. Foi comigo mesmo? Encontro reticente de olhares, afirmação, outro sorriso, meio que não querendo sorrir.

- Ah, gosto de George Orwell sim. Ele é ótimo!
- Não foi ele que escreveu aquele...
- "Revolução dos Bichos"?
- Isso! Uma crítica à revolução...? - Mais interrupções da leitora surpreendida.
- A Trotski e Stalin... Ao socialismo...
- Russa?
- Esse mesmo!

E houve uma alegria momentânea, o reconhecimento entre duas mentes que convergiam a algo. A livros e a sorrisos. A moça, segundo ele, parecia ser estudante de História. Ela, no entanto, estava mais para Jornalismo. Adorava as Humanas. Ele fazia Exatas. Achava que as Exatas tinham a sua própria filosofia. Ela assentiu na feição, mas discordou com o olhar. Não era chegada em Exatas. E houve um comentário aleatório, interessante, talvez pretensioso, talvez apenas um comentário.

- Acho que as Humanas e as Exatas se completam...

Quem algum dia saberá, caro leitor, se de fato estes extremos eram complementares? Pois ela, saciada de suas boas doses de literatura, de sua cara de História, de seus conhecimentos geográficos relevantes, de sua filosofia humanística de livros e palavras, completou letras com outras letras. E foi embora, passar bem. No fundo de sua consciência, no entanto, havia uma sequência cifrada agradável, inesperada, numérica. Havia uma livraria, havia George Orwell e havia uma conversa incompleta sobre qualquer coisa de inexata na vida, num romance renunciado do qual, por um momento, surpreendeu-se em querer ter sido protagonista. 

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