23 fevereiro 2013

A Menina que Fazia Nevar, de Grace McCleen

A fé, tanto quanto a política, por exemplo, é um conceito extremamente subjetivo, sujeito aos mais diferentes credos e capaz de causar grande disparidade entre opiniões. Para alguns, é motivo de ódio, de conflito e intolerância. Para outros, com o tempo, passa a ser incredulidade. Há aqueles, por outro lado, que apenas recorrem a ela nos instantes de desespero e agonia, como uma última solução. E há ainda os seus fiéis seguidores, que a convertem num eixo em torno do qual giram suas vidas. É neste último caso, então, que Judith, a protagonista de A Menina que Fazia Nevar, se encaixa. Regida por um cotidiano cristão até o último fio de cabelo, a garota vive sob a constante sombra da solidão, do preconceito e da melancolia.

Desde o começo, são apenas a menina e seu pai, John. A triste rotina dos dois, no entanto, é marcada pela ausência da Mãe, o primeiro e único amor dele, que deu a vida pela filha no parto e, após uma grave hemorragia, se recusou a fazer uma transfusão sanguínea em nome de sua forte religiosidade. A partir daí, a casa dos McPherson jamais foi a mesma e Judith passou a acreditar veemente que nunca seria capaz de ter o afeto de seu pai, um homem repentinamente infeliz, cansado de tudo e que refugia na igreja, na Bíblia e nas ponderações suas frustrações ao longo dos anos.

Paralelamente a isso, na escola, Judith enfrenta a repressão, a violência e o preconceito de seus colegas, mais uma vez em decorrência da fé e de sua ingenuidade. A garota é constantemente alvo de brincadeiras de mau gosto por parte de Neil Lewis, que faz de tudo para diminuí-la na frente dos outros e tornar sua vida um inferno. Com todos os fardos que a menina carrega aos precoces 10 anos, então, seu único refúgio passa a ser uma maquete construída por ela em seu quarto, através de todos os tipos de sucata, de um mundo com coisas boas que sempre almejou, a Terra Gloriosa. E algo de muito estranho ocorre quando, após conversar com um pastor, a protagonista passa a acreditar que é capaz de fazer milagres. Isto porque, certo dia, quando joga algodão, açúcar e espuma em sua maquete pelo pedido de uma voz desconhecida, a neve chega também à sua cidade e impede o acontecimento de fatos ruins que Neil havia prometido.
"O que vem primeiro, a oração ou as partículas? Como a menor coisa do mundo pode se tornar a maior de todas, como algo que podia ser parado fica incontrolável, como uma coisa que você nunca achou que iria valer muito começa a valer tudo? Talvez seja porque os milagres funcionam melhor com as coisas simples, quanto mais simples melhor. Talvez seja porque eles comecem com miudezas. Quanto mais miúdas, maior o milagre."
p. 62
Ao dar voz a uma menina de 10 anos, Grace McCleen escreve numa narração extremamente genuína e sincera. Com um inegável tom de romance cristão, sua história está repleta de citações bíblicas, de cultos que pai e filha frequentam juntos, de pregações e, como já bem destacado, do preconceito do qual os devotos acabam sendo alvos. Acima de tudo, no entanto, o tom que se faz mais constante ao decorrer da narrativa é a melancolia. Muitas vezes acompanhada, por sua vez, de uma monotonia típica destes dramas que mostram rotinas estáticas, pessoas infelizes e desprovidas de esperança; não podendo se esperar, desta forma, nenhum grande acontecimento ou clímax. A grandeza de A Menina que Fazia Nevar está, justamente, nas pequenas coisas. E elas são muitas.

Pode haver certo estranhamento do leitor desacostumado, tal qual a blogueira que lhes fala, quanto ao forte cunho religioso da obra. Este, todavia, está mais presente ao início e, aos poucos, questiona a fé de uma de suas personagens. Judith, por exemplo, passa por maus bocados e continua irredutível em relação àquilo que acredita. Em John, por outro lado, temos a imagem do desgaste, da dor e da redenção a algo próximo do niilismo. Simplesmente porque tudo em sua vida, em um intervalo muito pequeno, passa a dar errado, a causar sofrimento e desilusão.

A protagonista da obra é a típica garota que conserva, ao mesmo tempo, a inocência e a ignorância de uma criança em relação ao mundo adulto, mas, principalmente, a sabedoria de quem, com pouca idade, já viu muito. Suas perguntas e seus pensamentos sobre milagres, que quase sempre marcam o início dos curtos capítulos, são de quebrar o coração em diversos momentos. E mesmo para os mais céticos, como eu, a insistência de Judith em continuar acreditando comove. Para ela, o que há de mais desejado é a chegada do Armagedom, em nome de um mundo mais justo, no qual possa conhecer sua Mãe, ser amada pelo Pai, ir à escola sem ter medo de morrer com a cabeça enfiada na privada por Neil, viver numa casa que não sofra apedrejamento ou tentativas de queimada. Situações fortes e dramáticas, como fica evidente, narradas pela ingenuidade de uma menina.

E reforço novamente que, em se tratando de narração em primeira pessoa, McCleen não poderia ter sido mais feliz. Pelo simples fato de que a autora, ao mostrar uma história tão delicada, encontrou o tom certo para falar de situações difíceis e dos sonhos de uma criança em meio a elas. Tudo isso apoiado por uma linguagem extremamente metafórica, com grandes jogos de antíteses, também, e de uma imensa sensibilidade.

Para aqueles que tiverem suas reticências quanto ao gênero (como costumava ser o meu caso antes desta leitura), talvez o livro se arraste, até mesmo por sua típica monotonia. Mas logo que o leitor se vê embalado pela história, A Menina que Fazia Nevar, ao mostrar um pai e uma filha que ainda viverão muitas coisas juntos, promete ser comovente, doce - e também amargo, simultaneamente -, mesclando a desgraça da realidade e o poder de um milagre que, real ou não, impulsiona pessoas ao encontro da resistência e de uma estrada pela qual seguir em frente.
"Digo a mim mesma que há palácios nas nuvens, montanhas nas piscinas naturais, estradas na poeira sob meus pés e cidades no lado de baixo das folhas; há um rosto na lua e uma galáxia no meu olho e um redemoinho no alto da minha cabeça.
E então sei que sou imensa e sou pequena, ficarei para sempre e irei em um minuto, sou tão nova quanto um ratinho e tão velha quanto o Himalaia. Estou quieta e estou girando. E, se sou pó, sou também o pó das estrelas."
p. 196
 Informações técnicas
Título: A Menina que Fazia Nevar
Título original: The Land of Decoration
Autora: Grace McCleen
Tradução de: Renato Prelorentzou
Editora: Paralela (exemplar cedido em parceria)
Número de páginas: 310
ISBN: 978-85-65530-21-7
Gênero: Ficção inglesa

Grace McCleen estudou literatura inglesa na Universidade de Oxford e realizou um mestrado em York antes de se mudar para Londres e se dedicar integralmente à escrita e à música. A menina que fazia nevar é seu primeiro romance.

Um bom sábado para todos!

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