19 fevereiro 2013

Efeitos colaterais de "Delírio"


Em Delírio, Lena é uma jovem que, como toda a população de seu país, foi instruída a temer o amor. Em sua sociedade distópica, em vez de um sentimento belo, aclamado por canções e defendido por namorados, o tal é sinônimo de uma doença a ser erradicada: o amor deliria nervosa. E o mais duro de todo o enredo criado por Lauren Oliver é que, de uma forma ou de outra, grande parte dos jovens deseja com ardor passar pela intervenção logo, visando nunca mais correr o risco de sofrer das dores amorosas. A protagonista, naturalmente, integra este grupo. Tudo muda, todavia, quando ela conhece Alex e percebe que aquela palpitação, aqueles beijos e aquela alegria constante vivida entre os dois só pode significar algo bom e puro, algo que nenhum governo jamais será capaz de lhes tirar.

Todas as possíveis formas de amor | Foto: Life in Sure
Minha ideia, a princípio, era fazer uma resenha convencional sobre este incrível romance. Ao concluir sua leitura, contudo, cheguei à conclusão de que ele merecia um texto especial, com algumas palavras que pudessem sintetizar os efeitos que surte nos leitores mais sensíveis aos sentimentos inerentes à humanidade. Reflexivo, delicado e conduzido de maneira hábil pela autora, Delírio traz consigo uma história que move nossas estruturas e exalta a importância de coisas que, pelos vícios cotidianos do ser humano, acabam se tornando corriqueiras, perdendo seu devido valor.

Entre todas as distopias, acredito que esta não poderia ter sido tão visceral se não tivesse um regime contra o amor. Soa como pieguice alegar que não viveríamos sem ele - como adoramos dizer, aliás -, mas também costuma ser uma colocação superficial de nossa parte, normalmente de cunho romântico. O que é visível nesta obra, no entanto, é que o sentimento tem uma influência muito maior do que aparenta: se faz presente em cada gesto de ternura, nas boas recordações das pessoas queridas e nos sorrisos dados voluntariamente em dias amargos. Porque o amor, de algum jeito inexplicável, tem o poder de adocicar os que têm modos acres, de trazer alegria às mentes mais sombrias e de ver luz onde só se há perdição. E de perder, claro, pois quem nunca desejou ardentemente ser arrastado para as entranhas desconhecidas de uma paixão, onde tudo pode valer muito, nada ou muito pouco?

Foto: Tumblr Sky Charts
O que Lena, então, passa a sentir, quando encontra Alex, é o prelúdio de renúncia a uma realidade na qual ela sempre viveu. Tão acostumada aos desamores, à frieza alheia, aos gestos quase que automáticos de um povo estático e anestesiado contra qualquer emoção inesperada, a moça vê uma explosão de cores que cega seus olhos, atenta-se aos novos sons desconcertantes do mundo e guia seus sentidos, pela primeira vez, na direção para a qual eles a carregam. Com todos os medos que a novidade causa, entretanto, sempre acompanhada das certezas de que, ainda que pouco dure, nada mais há de tão franco, genuíno e forte quanto sua vontade explosiva de amar.

E a autora vai além ao mostrar que o epicentro de toda a necessidade humana de sentir vem, de uma forma ou de outra, deste famigerado amor. Das relações entre famílias, das ligações entre mães e filhos desde antes do momento vital de nascer, das relevantes brigas entre irmãos, das felicitações a um amigo de longa data, dos beijos intensos entre amantes; tornando fardos mais leves para uns, concentrando o peso do mundo nas costas de outros. Porque o tal, às vezes, se traduz como felicidade compartilhada, fraternidade, aceitação, paixão e, já que somos humanos, também carrega ódio em sua essência tão desconhecida das racionais ciências. Aos químicos, diria que o amor é um gás nobre espalhado por todo o mundo, mas ainda escasso em lugares nos quais a violência, a faina e a miséria se alastram como pragas. Aos físicos, que às vezes pode ser mais veloz que o som, num ínfimo instante de tempo em que dois olhares se encontram e amam-se para depois se perderem e se afogarem em outros olhares, novamente. Aos matemáticos, que compreendem mais de um infinito entre duas pessoas, entre um grupo, entre uma família inteira. E aos biólogos, enfim, que talvez todos nós, humanos, tenhamos algumas células amorosas entre as maiores infecções de nossos sistemas, aderindo à nossa anatomia desde o começo de toda existência.

Foto: Tumblr/ We Heart It
E em Delírio, não apenas é erradicado o sentimento entre os povos, como aquele que transcende de geração em geração através da cultura, do som, da fala, da escrita e da imagem, num mundo em que o homem proclama amor por onde passa desde o início das eras. Às vezes irreverente, noutras muito discreto - fã das entrelinhas -, o hino dos amantes e apaixonados, que está na língua dos trovadores, na prosa dos românticos, na melodia harmoniosa das canções, no "que será, que será?" de Chico Buarque, nas pichações de muros urbanos, nas cartas que separam dois corações distantes e nos sonhos que unem duas mentes cheias de saudade. Saudade, aliás, aparenta ser uma invenção do pai de todas as emoções. E o mundo desamparado e cinzento de Lena, ainda que desconheça, é saudoso e carente de seus antigos amores.

Desconfio que, acima de qualquer outra coisa, como tanto falam as citações de Shakespeare, as odes de Pablo Neruda, os sonetos de Camões, os desafetos de Machado de Assis, as dores de Caetano Veloso, a indignação de Augusto dos Anjos, a renúncia de Virginia Woolf e mais uma série de emoções palpáveis nas obras de grandes artistas - ou mesmo nas mentes de qualquer pessoa comum - estejamos todos, sem exceção, doentes de amor. E torço para que este, tanto para o bem quanto para o mal, continue a manter em equilíbrio o mundo dos extremos, que encontre seu lugar em meio aos caminhos tortuosos de um coração confuso, acalmando-o ou disparando-o para sempre -, que nos poupe de qualquer sanidade contra o desconcerto da vida e que não tenha cura, jamais, porque é melhor abdicar com o calor de já ter amado do que viver na constante frieza de um mundo que desconhece o amor.

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