07 abril 2013

Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago

"O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos." (p. 131)
Ao falar sobre livros de "impacto", desenvolvi um hábito de caracterizá-los com o adjetivo "visceral", ainda que nem todos o sejam no sentido mais literal da palavra. Quando concluí a leitura deste romance de José Saramago, no entanto, creio que nenhum outro vocábulo seria tão adequado para descrevê-lo. Simplesmente porque, da primeira linha ao último ponto, Ensaio sobre a Cegueira é duro, cruel, angustiante e, mais que qualquer outra coisa, visceral. 

Através de uma narrativa em que as personagens não têm nome e nem tampouco as falas são marcadas por travessões ou aspas (uma característica típica do autor que reflete a angústia de suas obras), tem-se aqui um mundo em que todos, subitamente, um a um, são assolados pela cegueira. Não a cegueira comum, a qual já conhecemos, mas outra que se dá por uma verdadeira pandemia, que chega aparentemente sem motivo e turva a visão de quem antes costumava ver tão bem. Uma cegueira branca, leitosa e repentina que causa caos e deixa os instintos primitivos da humanidade à flor da pele.

Mais terríveis que o próprio fato de se estar cego, em Ensaio sobre a Cegueira, todavia, são as consequências que a condição traz, levando o leitor a realizar diversas reflexões. Como único escritor em língua portuguesa que venceu o Nobel de Literatura, Saramago desnuda com destreza a alma humana e suas entranhas, o que elas têm de melhor e, com enfoque notável, de pior.

Numa terra de cegos em que não existe mais governo ou ainda funcionários para administrar cada setor necessário à vida civilizada, imperam a necessidade, a crueldade e o instinto de sobrevivência. Nesta narrativa perturbadora, mata-se por comida, alguns perdem suas vidas pisoteados e seus cadáveres, na maioria das vezes, apodrecem ao relento. O ar da cidade, que antes costumava ser puro, rapidamente se torna nauseabundo, quase que tóxico e pestilento pela sujeira que não tarda a aderir à pele dos cegos. Cegos que mal dispõem de água, cegos que não conseguem chegar até o banheiro, cegos que se veem no direito de violar mulheres necessitadas de alimento, cegos que, de tão desiludidos, passam a crer que até seu Deus tenha cegado.

De tão intenso e eloquente, oscilo perante a dúvida de como classificar este romance português. Se extremamente humano ou, paradoxalmente, desumano. Uma história feita para fazer com que seu leitor sofra, causadora de uma dor muitas vezes aguda e repugnante. Uma história que, entre tantos cegos, traz uma mulher, talvez a única, capaz de enxergar. E também talvez a ela que, por ser a única dotada de visão, caibam os maiores fardos e sofrimentos. Os de ver uma sociedade que se degrada cada vez mais, aflorada pelos seus instintos mais primitivos, e ser completamente incapaz perante tamanho horror.

Ler Saramago é, como um todo, uma experiência que vai muito além da leitura convencional. Com seu estilo único de prosa e seus parágrafos longuíssimos, em que as falas e as descrições se misturam de forma a refletir a confusão em meio a tantos absurdos, o autor é, merecidamente, uma figura digna de prestígio da literatura contemporânea. Em Ensaio sobre a Cegueira, enfim, encontra-se provavelmente a expressão máxima de sua obra; um livro que, segundo palavras dele mesmo, é "francamente terrível" e foi escrito para que seu leitor sofra tanto quanto o autor sofreu ao escrevê-lo. 

Livro este que fica marcado, marca a gente e abre-nos os olhos perante o desconcerto do mundo, despertando-nos para o fato de que, talvez, de uma forma ou de outra, estejamos todos um pouco cegos também.
"(...) levei a minha vida a olhar para dentro dos olhos das pessoas, é o único lugar do corpo onde talvez ainda exista uma alma," (p. 135)

Informações técnicas
Título: Ensaio sobre a Cegueira
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Número de páginas: 310
ISBN: 85-7164-495-0
Gênero: Romance português

José Saramago nasceu em 1922, de uma família de camponeses da província do Ribatejo, em Portugal. Devido a dificuldades econômicas foi obrigado a interromper os estudos secundários, tendo a partir de então exercido diversas atividades profissionais: serralheiro mecânico, desenhista, funcionário público, editor, jornalista, entre outras. Seu primeiro livro foi publicado em 1947. A partir de 1976 passou a viver exclusivamente da literatura, primeiro como tradutor, depois como autor. Romancista, teatrólogo e poeta, em 1998 tornou-se o primeiro autor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura. Saramago faleceu em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, em 2010. A Fundação José Saramago mantém um site sobre o autor www.josesaramago.org




0 comentários: